Parar a Roda do Mundo


Poderei escrever sem escrever a cada passo que a ideia de Sarajevo se me tornou fisicamente insuportável?, e isto porque o simples facto, que aparece como «surreal», de, sob bombas e crianças esventradas, continuarem a escrever, fazer jornais, realizar concertos, encenar peças de teatro, dar recitais de poesia, e que isso lhes surja como a coisa mais natural deste mundo, me vem mostrar como existe nestes restos estropiados de sons, palavras e cores, uma energia devastadora, e que saber que é assim, que pode ser assim, me dá uma lição de dignidade humana que ultrapassa qualquer saber de que eu disponha para fazer o que quer que seja, e daqui emerge, não a dor desta criança morta ou deste velho adormecido de inverno e frio, mas a dor do irreversível, que é aquela de tudo o que eles não chegaram a viver, e de que Sena falou num poema inolvidável: a palavra que não chegaram a dizer, o beijo que não deram, o corpo que não tocaram, o poema que não leram, a maçã que não comeram. Vão-me dizer que não há nada a fazer, e talvez seja realisticamente verdade, mas, se assim é, esse é um escândalo inominável, a mais injusta de todas as injustiças, aquela que por si só deveria fazer parar a roda do mundo.

Eduardo Prado Coelho
Tudo o que não Escrevi Vol.II