O Passado é um Animal Grotesco


(...) mal ganhámos alguma distância em relação a nós, nos tornamos desagradáveis para nós próprios. Este estádio do terror por nós próprios começa alguns anos antes de agora e termina, mais ou menos, nos avós, no ponto, portanto, em que começamos a estar completamente indiferentes. Só o que ali começa já não está antiquado, mas sim velho, é o nosso passado, e já não o que por nós passou. Mas o que nós próprios fizemos e fomos pertence quase inteiramente ao estádio do terror. Seria verdadeiramente insuportável que nos recordassem tudo o que alguma vez julgámos ser o mais importante, e a maior parte das pessoas, se, numa idade mais avançada, se lhes apresentasse de novo, em forma de cinema sonoro, os seus maiores gestos e intervenções, achar-se-ia espantosamente pouco atraente. Como é que pode explicar-se isso? Manifestamente, faz parte da natureza do que é terreno um exagero, um excesso e uma exuberância. Afinal, mesmo para uma bofetada é preciso mais do que aquilo por que podemos responsabilizar-nos. Este entusiasmo do agora consome-se e, logo que se tornou desnecessário, apaga-o o esquecimento, que é uma actividade muito criativa e substancial, só através da qual, no fundo, sem cessar, e sempre de novo, nascemos na forma daquela pessoa despreocupada, agradável e consequente por mor da qual achamos justos tudo o que existe no mundo.

(...)

Pois posso bem dizer que não gosto de demorar-me comigo mesmo e aquilo que muitas pessoas fazem, pôr-se confortavelmente a ver fotografias que as mostram em tempos passados ou gostarem de se lembrar do que fizeram no sítio tal e no momento tal, este sistema de caixa económica do eu é, para mim, totalmente incompreensível. Nem sou especialmente dado a humores, nem vivo apenas para o momento; mas, quando alguma coisa passou, então também eu passei e, se me lembro de, numa rua de outrora, ter percorrido este caminho com frequência, ou quando vejo a minha antiga casa, sinto simplesmente, sem mais pensamentos, como uma dor, uma veemente aversão contra mim, como se me lembrassem uma vilania.
 
Robert Musil
Espólio em Vida


— Por que motivo — perguntei — vivendo assim a sua sabedoria não escreve as suas memórias? Ou simplesmente — continuei ao vê-lo sorrir — as lembranças das suas viagens? 
— Porque não me quero lembrar — respondeu. — Se o fizesse, teria a sensação de impedir a chegada do futuro e de prolongar o passado. É do perfeito esquecimento de ontem que crio a novidade de cada hora. Nunca me bastou ter sido feliz. Não acredito nas coisas mortas e sou incapaz de distinguir entre não ser mais e nunca ter sido.

(...)

— Saudades, remorsos, arrependimentos, são alegrias passadas vistas de costas. Não gosto de olhar para trás e abandono ao longe o meu passado como o pássaro, para voar, deixa a sua sombra. Ah! Michel, a alegria inteira espera-nos sempre, mas quer sempre encontrar o leito vazio, ser a única, e que cheguemos a ela como um viúvo. Ah! Michel, toda a alegria é semelhante ao maná do deserto que se corrompe de um dia para o outro; é semelhante à água da nascente de Amélès, que, segundo Platão, não podia ser guardada em nenhuma jarra. Que cada instante leve tudo o que trouxe. 

André Gide
O Imoralista


O passado é um país estrangeiro. Eles fazem as coisas de maneira diferente lá.

L.P. Hartley
O Mensageiro