Aprender a Morrer
Cícero diz que filosofar nada mais é do que aprender a morrer. Isto porque o estudo e a contemplação puxam até certo ponto a nossa alma para fora de nós e mantêm-na ocupada à margem do corpo, o que constitui uma espécie de aprendizagem e de semelhança com a morte; ou antes, porque toda a sabedoria e todos os pensamentos do mundo culminam neste ponto: ensinar-nos a não ter medo de morrer.
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Não sabendo onde a morte nos pode esperar, esperemo-la em todo lado. A meditação prévia da morte é também uma meditação de liberdade. Aquele que aprendeu a morrer, desaprendeu de ser escravo. O saber morrer aparta-nos de toda a sujeição e constrangimentos. Não há mal na vida para aquele que entendeu que a privação da vida não é um mal.
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Para terminar o que tenho de fazer antes de morrer, nem que seja o trabalho de uma hora, todo o tempo me parece curto. Alguém que, num destes dias, remexia nos meus papéis, encontrou um apontamento sobre algo que gostaria que se fizesse após a minha morte. Disse-lhe o que era verdade, que, não estando a mais de uma légua de minha casa, são e vigoroso, apressei-me a escrever ali mesmo, pois não estava seguro de chegar a casa. Como homem continuamente envolvido nos seus pensamentos, e firmando-os em mim, estou a todo o instante tão preparado quanto possível. E a chegada imprevista da morte não me ensinará nada de novo. É preciso estar sempre de botas calçadas e pronto, tanto quanto dependa de nós, e acima de tudo tomar cuidado para que nada mais nos preocupe senão nós mesmos,
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Que tolice atormentarmo-nos com a dispensa de todos os tormentos! Assim como o nosso nascimento dá origem ao nascimento de todas as coisas, a nossa morte originará também a morte de todas as coisas. Por isso, chorar por não estarmos vivos daqui a cem anos é tão insensato quanto chorar porque não vivíamos há cem anos. A morte é a origem de uma outra vida. Assim também chorámos, e assim também nos custou entrar nesta, e assim também nos despojámos do nosso antigo véu quando nela entrámos. Uma coisa não pode ser penosa quando ocorre uma só vez. Será sensato recear tanto tempo uma coisa que é tão breve? O viver muito tempo e o viver pouco tempo tornam-se um com a morte. De facto, o longo e o breve não pertencem às coisas que já não existem.
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Dai o lugar a outros, como os outros vos deram. A igualdade é o principal elemento da equidade. Quem se pode lamentar de estar incluído numa condição em que todos estão incluídos? Assim, por muito que viverdes, nem por isso encurtará o tempo que passareis morto; é inútil; permanecereis nesse estado que tanto receais o mesmo tempo, ainda que tivesses morrido à nascença.
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Quem ensina os homens a morrer, ensina-os a viver.
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Não posso aceitar a forma como entendemos a duração da nossa vida. Observo que os sábios encurtam-na bastante em comparação com a opinião comum. «Como! — diz o jovem Catão aos que o querem impedir de matar-se —, estarei eu na idade em que me podem recriminar por abandonar a vida demasiado cedo?» No entanto, tinha apenas quarenta e oito anos. Para ele era uma idade já madura e bem avançada, tendo em conta os poucos que a atingiam. E aqueles que julgam que um certo curso de vida, que designam de natural, guarda a promessa de mais uns anos, estão bem enganados; talvez aí chegassem se tivessem um privilégio que os isentasse de um grande número de acidentes aos quais estamos naturalmente sujeitos e que podem interromper esse curso que prometem a si próprios. Quão insensatos são esses que esperam morrer por um esgotamento das nossas forças trazido pela velhice extrema, pois que é a mais rara e a menos comum das mortes! É a única a que chamamos natural, como se fosse contranatura ver um homem morrer por uma queda, afogar-se num naufrágio, ser surpreendido pela peste ou por uma pleurisia, e como se a nossa condição natural não nos expusesse a todos esses acidentes. Que este belo discurso não nos seduza: talvez devêssemos antes apelidar de natural o que é geral, comum e universal. Morrer de velhice é uma morte rara, excepcional e extraordinária; portanto, menos natural do que as outras. (...) E porque superámos os limites habituais que estabelecem a verdadeira medida da nossa vida, não devemos alimentar a esperança de ir muito mais além. Uma vez que escapámos a tantas ocasiões em que podíamos ter morrido, e em que vemos toda a gente tropeçar, temos de reconhecer que uma sorte extraordinária como esta que nos mantém vivos — e que é fora do normal — não pode durar muito mais tempo.
Montaigne
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