Mistificar a Realidade
Vemos numa reportagem os pés das pessoas a atravessarem uma linha férrea a fugir. Os pés. É transformar o sofrimento em sofrimento anónimo. É o pior. O mais horroroso que se pode fazer é não mostrar o rosto daquele que sofre. Mas na mesma reportagem, quando apareciam os poderosos, apareciam os rostos. Esses têm rosto. Foi há uns meses, hoje já mostram pessoas com rosto, mas num jogo quase tão nojento como mostrar só pessoas com pés. É uma exploração da dor do outro. Não sei que nome dar ao sentimento que tenho diante disso. O rosto dos mortos não é mostrado.
(Há uma ética jornalística.)
Compreendo a ética. É o discurso da abstracção. É um discurso autolegitimado. Essa aparente manifestação de sensibilidade não faz mais do que mistificar a realidade. É como se num campo de concentração nazi se mostrassem aquelas montanhas de mortos. É torná-los anónimos. O monte de mortos é o anonimato total, ou quase. Tornar anónimo é o pior que há, a morte anónima. É preciso que dêem rosto a cada um que morre para que cada um de nós tenha vergonha por pactuar com essa morte, porque, de certo modo, todos pactuamos com ela.
Rui Nunes
Jornal Público