A Descarnada


Não há que fiar na descarnada, digo, na morte, a qual tão bem come cordeiro como carneiro; e ouvi dizer a nosso cura que com igual pé pisava as altas torres dos reis e as humildes choças dos pobres. Tem esta senhora mais de poder que de melindre; nada lhe faz asco: de tudo come e a tudo se afaz, e de toda a sorte de gentes, idades e preeminências enche seus alforges. Não é segador que durma a sesta, que a todas as horas sega, e corta tanto a seca como a verde erva; e não parece que masca, senão que engole e traga quanto se lhe põe diante, porque tem fome canina, que nunca se farta; e ainda que não tenha barriga, dá a entender que está hidrópica e sedenta de beber somente as vidas de quantos vivem, como quem bebe um jarro de água fria. 

Miguel de Cervantes
Dom Quixote de la Mancha