Do Costume


Quando os Cretenses de outrora queriam maldizer alguém, rogavam aos deuses para que o fizesse incorrer num qualquer mau hábito. Mas o principal efeito da força do costume consiste em nos agarrar e prender com as suas garras de tal maneira que é dificil conseguirmos desprender-nos, e em fazer-nos recuperar a calma para reflectir e submeter à razão as suas prescrições. Em boa verdade, porque as bebemos com o leite do nosso nascimento, e porque o rosto do mundo se mostra nesse estado ao nosso primeiro olhar, temos a impressão de ter nascido com uma disposição para nos comportarmos desse modo. E as opiniões correntes, que vemos por todo o lado revestidas de autoridade e encasquetadas na nossa alma pela semente dos nossos pais, passam por opiniões comuns e naturais. 

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Julgo ter compreendido bem a força do costume aquele que primeiro forjou o conto em que uma aldeã, tendo aprendido a cuidar e a carregar nos braços um vitelo desde o seu nascimento, sem nunca deixar de o fazer, acabou por carregá-lo ainda quando já ele era um grande boi por força do hábito. Com efeito, o costume é, em boa verdade, uma senhora violenta e traiçoeira. Ela põe sobre nós, pouco a pouco, às escondidas o pé da sua autoridade, mais ainda, uma vez solidamente estabelecida e instalada com o auxílio do tempo, depressa nos dá ela a ver um rosto furioso e tirânico contra o qual já não temos a liberdade de levantar os olhos. Vemo-la forçar sistematicamente as regras da natureza. 

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 O costume anestesia a visão do nosso pensamento. Os bárbaros em nada são mais peculiares para nós — nem existe razão para isso — do que nós para eles, como todos reconheceriam se, após nos termos passeado por estes novos exemplos, nos soubéssemos ater aos nossos próprios [costumes] e fazer uma justa comparação. A razão humana é uma tintura feita de todas as nossas opiniões e costumes com quase a mesma dose, independentemente da sua forma: infinita em matéria, infinita em diversidade. 

Montaigne
Ensaios