Dê-mos Graças a Alá


O camião demorara catorze horas para ir de Kerzaz a Adrar e, à exceção da paragem para almoço no oásis de El Aougherout, o velho estivera o tempo todo sentado no chão sem se mexer, com as pernas dobradas por baixo de si, o capuz do seu albornoz puxado para cima do turbante de modo a proteger-lhe o rosto da fina poeira que se coava para cima através do piso. A passagem de primeira classe nos veículos da Compagnie Générale Transsaharienne autorizava o utente a viajar dentro do compartimento envidraçado com o condutor, e era aí que eu ia sentado, virando-me para trás de vez em quando para olhar através das vidraças enfarruscadas a figura solitária que continuava tranquilamente sentada na traseira, no meio do tornado de poeira. Ao almoço, quando já lhe vira o rosto com os seus ardentes olhos castanhos e a magnífica barba branca, ocorreu-me que ele parecia um elegante e muito sério Pai Natal.
A poeira tornou-se pior durante a tarde, pelo que ao crepúsculo, quando finalmente chegámos a Adrar, até o condutor e eu estávamos cobertos por ela. Eu saí e sacudi-me, e o velhote saiu a cambalear pela parte de trás, com cascatas de pó caindo-lhe das vestes. Depois veio até à frente do camião para falar com o condutor, o qual, sendo um bom muçulmano, queria ir tomar um duche e lavar-se. Infelizmente além de ser um dos bons era um muçulmano citadino, pelo que se impacientou com a comedida cadência do discurso do seu conterrâneo e subitamente bateu com a porta, sem se aperceber de que a mão do idoso estava no caminho.
Com tranquilidade, o velho abriu a porta com a outra mão. Aponta do dedo médio dele pendia de um pedaço de pele. Mirou-a por um instante, depois apanhou serenamente uma mão-cheia daquela poeira ubíqua, juntou as duas pontas do dedo e deitou a poeira sobre este, dizendo baixinho: — Dêmos graças a Alá. — Dito isso, sem que a expressão do seu rosto alguma vez se alterasse, pegou no seu fardo e no bordão e foi-se embora a caminhar. Fiquei a olhar para ele, admiradíssimo, e a refletir na diferença entre o seu comportamento e aquele que teria sido o meu nas mesmas circunstâncias. Não se mostrar qualquer sinal exterior de dor já é assaz invulgar, mas não expressar qualquer ressentimento contra a pessoa que nos feriu parece muito estranho, e dar graças a Deus por um tal momento é o retoque mais estranho de todos.
Manifestamente, exemplos de um comportamento tão estoico não se encontram todos os dias, ou eu não me teria lembrado deste; a minha experiência desde então, porém, mostrou-me que ele não é atípico, e que permaneceu comigo e se transformou num símbolo daquilo que é admirável no povo do Norte de África. — Este mundo que vemos é tão pouco importante e tão efémero como um sonho dizem eles. — Levá-lo a sério seria uma absurdez. Pensemos antes nos céus que nos rodeiam. — E a paisagem é atreita a reflexões acerca da natureza do infinito. Noutras partes de África tem-se consciência da terra que está por baixo dos nossos pés, da vegetação e dos animais; todo o poder parece concentrado na terra. No Norte de África a terra torna-se a parte menos importante da paisagem porque damos por nós constantemente a levantar os olhos para mirar o céu. Quando já compreendemos isso, não intelectualmente mas emocionalmente, também compreendemos porque é que a grande trindade de religiões monoteístas — judaísmo, cristianismo e islão, que mudaram a fonte do poder da Terra propriamente dita para os espaços exteriores à Terra — evoluiu em regiões desérticas. E entre as três é o islão, talvez por ser a religião de evolução mais recente, que opera mais diretamente e com maior força sobre as ações quotidianas daqueles que a abraçam.

Paul Bowles
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