O Baptismo da Solidão


Assim que se chega ao Saara, seja pela primeira ou pela décima vez, atenta-se na imobilidade. Um silêncio incrível, absoluto, prevalece fora das povoações; e dentro destas, mesmo em locais de azáfama, como os mercados, há nos ares uma qualidade de silencioso recato, como se a pacatez fosse uma força consciente que, ressentindo-se da intrusão do som, minimizasse e dispersasse o som de imediato. Seguidamente há o céu, comparado com o qual todos os outros céus parecem esforços de corações débeis. Sólido e luminoso, ele é sempre o ponto focal da paisagem. Ao crepúsculo, a sombra precisa, encurvada, da Terra ergue-se para ele rapidamente no horizonte, dividindo-o em secção luminosa e secção escura. Quando toda a luz do dia já desapareceu e o espaço está pejado de estrelas, ele continua a ser de um azul intenso e ardoroso, mais escuro directamente por cima e empalidecendo em direcção à Terra, pelo que a noite realmente nunca se torna escura. 
Deixa-se o portão do forte ou da povoação para trás, passa-se pelos camelos deitados cá fora, sobe-se ao alto das dunas, ou sai-se para a planície dura e pedregosa e fica-se algum tempo em pé, a sós. Daí a pouco, ou se estremece e se regressa a correr para dentro das muralhas, ou se continua ali em pé e se permite que nos aconteça algo de muito peculiar, algo que toda a gente que aqui vive já sofreu, e ao qual os franceses chamam le baptême de la solitude. É uma sensação única, e nada tem a ver com a solidão, pois a solidão pressupõe memória. Aqui, nesta paisagem inteiramente mineral iluminada por estrelas que parecem clarões, até a memória desaparece; nada resta a não ser a nossa própria respiração e o som do bater do nosso coração. Um estranho, e indubitavelmente agradável, processo de reintegração começa dentro de nós, e temos a opção de lutar contra ele, e de insistir em permanecer a pessoa que sempre fomos, ou de o deixar seguir o seu curso. Pois ninguém que haja ficado no Saara durante algum tempo é exactamente o mesmo que quando ali chegou. 
(...)
Talvez a pergunta lógica a fazer neste ponto seja: porquê ir? A resposta é que quando um homem já lá esteve e sofreu o baptismo da solidão não consegue evitá-lo. Caso alguma vez tenha estado sob o feitiço do vasto, luminoso e silencioso território, nenhum outro lugar é suficientemente forte para ele, nenhumas outras cercanias conseguem propiciar a supremamente satisfatória sensação de existir no meio de algo que é absoluto. Ele voltará lá, sejam quais forem os custos em conforto e em dinheiro, porque o absoluto não tem preço.» 

Paul Bowles
Viagens