Moral do Essencial
(...) Só se considera como sendo uma obra a conclusão de um extenso trabalho sobre um projecto estetico.
E vou ainda mais longe: obra é tudo aquilo que o romancista vier a aprovar na hora do balanço. Porque a vida é curta, a leitura leva tempo e a literatura está a suicidar-se com a sua proliferação insensata. A começar por si próprio, cada romancista deveria eliminar tudo o que fosse secundário e louvar, para si e para os outros, a moral do essencial!
Mas não existem apenas os autores, as centenas, os milhares de autores; existem também os investigadores, os exércitos de investigadores que, guiados por uma moral oposta, acumulam tudo o que vão recolhendo com o intuito de conseguirem alcançar o Todo, objectivo supremo. O Todo, entenda-se, aquela montanha de rascunhos, de parágrafos rasurados, de capítulos rejeitados pelo autor, mas publicados pelos investigadores em edições ditas «críticas», sob o pérfido nome de «variantes», o que quer dizer, se é que as palavras ainda possuem algum sentido, que tudo o que o autor escreveu teria valor e seria igualmente aprovado por si.
A moral do essencial cedeu o lugar à moral do arquivo. (Ideal do arquivo: a amena igualdade reinante numa imensa fossa Comum.)
Milan Kundera
A Cortina