Ao Espelho
“A expressão «o homem sem qualidades», embora de uso elegante, tem a desvantagem de não ter sentido imediato e de deixar perder a ideia de que o homem em questão não tem nada que lhe seja próprio: nem qualidades nem nenhuma substância. A sua particularidade essencial, diz Musil nas notas, é não ter nada de particular. É o homem qualquer e, mais profundamente, o homem sem essência, o homem que não aceita deixar-se cristalizar num carácter ou congelar numa personalidade estável: homem certamente privado de si, mas porque não quer acolher como algo que lhe seja particular esse conjunto de particularidades que lhe vem de fora e que quase todos os homens identificam ingenuamente com a sua pura alma secreta, em vez de verem nele uma herança alheia, acidental e opressiva”.
(…)
“O homem sem particularidades, que não quer reconhecer-se na pessoa que é, para quem os traços que o particularizam não fazem dele nada de particular, jamais próximo do que lhe é mais próximo, jamais estranho ao que lhe é exterior, escolhe ser assim por um ideal de liberdade, mas também por viver num mundo – o mundo moderno, o nosso – em que os factos particulares estão sempre prestes a perder-se no conjunto impessoal das relações, de que só marcam a intersecção momentânea.”
Maurice Blanchot
O Livro por Vir (capítulo dedicado a O Homem sem Qualidades de Robert Musil)