Corpo-Ardósia


Arrancou os pêlos das axilas e das pernas com cera. A cera saiu em tiras com um crepitar frio. Ela tinha um creme ácido, exfoliante, receitado por um médico, e, depois de se ter depilado, massajou-se com ele para remover a pele papirácea. Esta soltou-se em escamas e farrapos e bolinhas que ela gostava de segurar entre os dedos e de imaginar, sem réstia de morbidez, como a morte celular de algo dentro de si.

Usou uma escova de pêlo bem duro para raspar os cotovelos e os joelhos. Queria que doesse. 

Não precisava de ir a Tânger para comprar esponjas de lufa e pauzinhos de laranjeira para manicura. Encontrava-os em todos os centros comerciais, nas prateleiras altas, ao lado dos pincéis para o rosto, das lâminas de barbear e dos sabonetes de aveia. Eis a sua obra, eclipsar todos os pontos de contacto com a sua aparência e postura anteriores e converter-se num vazio, um corpo-ardósia em que todas as semelhanças com o passado tivessem sido apagadas.

Tinha um creme descolorante que aplicou em quase todo o corpo, para se despigmentar. Cortou o cabelo, depois cortou mais. Era uma tarefa rude, que se tornou quase brutal quando ela oxigenou o pouco cabelo que lhe restou. Ao espelho, queria ver a clássica figura que ninguém vê, a pessoa que somos treinados para ignorar com os nossos olhos, esvaziada de qualquer traço familiar, um espectro na atmosfera de tensão nocturna de qualquer casa de banho pública.

Usou adstringentes para remover os resíduos de sabonete, as gorduras e a sujidade crónica e insidiosa. Tinha tiras adesivas que colava e arrancava, extraindo numerosas impurezas dos folículos e dos poros, pequenas bolas amareladas.

Constituíam um sistema oculto e interessante, estas secreções sebáceas, acontecimentos glandulares do cosmos corporal, pequenas úlceras e erupções, locais de impacte de gorduras, óleos, sal e suor, e extraí-las proporcionava-lhe um prazer quase erudito.

Don DeLillo
O Corpo Enquanto Arte