Memória e Olvido


Contrariando a tradição filosófica clássica, que é hipermnésica, e opondo-se à teoria da reminiscência de Platão, Friedrich Nietzsche deu ao esquecimento um trono no reino ameaçado da vida. Ele não faz da amnésia um dom absoluto, mas torna-a um precioso bem relativo na instável e inquieta balança que pesa a memória e o olvido.
Segundo ele, o esquecimento é o fundamento da vida comum e a condição da felicidade. É para a mente o que a digestão é para o corpo. O seu valor tem a marca do mais e não do menos — e a sua positividade é uma energia que faz agir, uma leveza que faz avançar, uma alegria que faz ousar, um poder que faz construir. «Não há felicidade, nem serenidade, nem esperança, nem orgulho, nem desfrute do instante presente sem a faculdade de esquecer», diz.
Para o autor da Genealogia da Moral, aos prisioneiros que habitam o cárcere da memória é servido o pesado pão duro do ressentimento, da raiva e da paralisia: rememorar é ruminar e remoer. Anti-historicista, Nietzsche vê que a história não é um princípio de identidade nem um motor de unidade, mas um pesado peso posto sobre os ombros vergados de todos e de cada um, impedindo os povos de se autodeterminarem livremente. Afirma esse astucioso mestre da suspeita que, quer para as pessoas, quer para os povos, o sentido não se herda — cria-se.

José Manuel dos Santos / António Soares
Revista Electra nº 8


O esquecimento não é apenas uma vis inertiae e, como crêem os espíritos superficiais; é antes uma faculdade inibitória activa no sentido restrito e mais positivo da palavra [...]. Fechar temporariamente as portas e janelas da consciência; permanecer insensível ao ruído e às lutas que entre si travam os órgãos servis do nosso mundo subterrâneo; fazer silêncio e quase tábua rasa da nossa consciência, para que haja novamente lugar a coisas novas, sobretudo às funções e aos funcionários mais nobres, para governar, prever, predeterminar (porque o nosso organismo assemelha-se a uma oligarquia) eis, repito, os benefícios do esquecimento activo, que é, por assim dizer, porteiro e guardião da ordem mental, do sossego, da etiqueta. Assim, é imediatamente evidente que, sem o esquecimento, não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho ou o tempo presente.

Friedrich Nietzsche
A Genealogia da Moral citado por Carla Ganito no artigo Desligar da rede: A influência da cultura digital sobre a privacidade, a memória e a morte, revista Electra