O Êxtase


Foi então que vi pela primeira vez irmandades em acção. Nessa época, mais de metade da população marroquina pertencia a uma ou outra das confrarias religiosas que permitem aos seus adeptos atingir a transcendência do estado consciente normal (uma necessidade psíquica comum a todo o continente africano), em termos islâmicos. Para a maior parte dos marroquinos instruídos, a simples existência desses cultos é uma aberração; com o início do nacionalismo, foram reprimidos, com mais ou menos sucesso, por umas duas décadas. Quando voltaram a ser toleradas, velou-se para que as observâncias tivessem lugar longe de olhares não-muçulmanos. Dizia-se que os forasteiros poderiam ridicularizar os participantes, ou considerar atrasado o povo marroquino, caso vissem tais espectáculos. Eu suspeitara de que um dia iria deparar com uma cena que me revelasse a pulsação do lugar, senão mesmo o coração palpitante e exposto da sua magia, mas foi uma tremenda surpresa encontrá-la pela primeira vez em plena rua. Ali estavam elas, vários milhares de pessoas que, junto a Bab Mahrouk, batiam com os pés, arquejavam, estremeciam, rodopiavam e entoavam cânticos, todas conscientes apenas da avassaladora necessidade de alcançar o êxtase. Passaram lá todo o dia e toda a noite; conseguia ouvir os tambores do meu quarto, e durante a noite o ruído intensificava-se. Na manhã seguinte, a turba encontrava-se em Bab Dekaken, mesmo à porta do hotel. Então compreendi que se tratava de uma procissão, que se movia à razão de aproximadamente trinta metros por hora, com uma lentidão tão extrema que enquanto se olhava para eles não era possível dar pelo seu avanço. Ladeando a falange iam mulheres em transe: espuma rosada e branca saía-lhes das bocas; guinchos curtos acompanhavam os seus movimentos espasmódicos. Quando alguém perdia por completo a consciência e tombava, era arrastado para dentro da muralha de espectadores. A procissão levou dois dias a ir de Bab Mahrouk a Bab Chorfa, cobrindo uma distância de aproximadamente uma milha. Nunca teria acreditado num relato do fenómeno, se não o tivesse presenciado. Mas qual, ou quais, das irmandades representavam os participantes, se pertenciam à Aissaoua, à Jilala, à Hamatcha ou a outra qualquer, era coisa que não havia maneira de perceber, e também não perguntei. Foi aqui, pela primeira vez, que me tornei consciente de que um ser humano não é uma entidade, e que a sua interpretação dos fenómenos exteriores só faz sentido quando é partilhada pelos outros membros do seu grupo cultural. Uma banalidade, é certo, mas que me tinha escapado até então.

Paul Bowles
Memórias de um Nómada