O Céu que Nos Protege

Numa noite aprazível de Maio, enquanto dormia no meu quarto silencioso, tive um sonho. Nada havia nisso de extraordinário; sempre sonhei, e por vezes até acordava e tomava nota dos sonhos sem sequer acender a luz. Este sonho era diferente porque, apesar de curto e não conter peripécias além de uma sucessão variável de ruas, deixara a sua essência em mim, após acordar, num estado de precisão minuciosa: um resíduo de doçura e calma inefáveis. Ao sol do fim da tarde, eu passeava lentamente por ruas complexas e afuniladas. Ao relembrar o sonho, ali deitado e com pena de ter deixado o sítio para trás, compreendi bruscamente que a cidade mágica existia realmente. Era Tânger. O meu coração acelerou, e memórias de outros pátios e escadarias inundaram-me, ainda frescas ao cabo de dezasseis anos. Afinal, a Tânger por onde passeara era a Tânger de 1931. A cidade continuava presente na manhã seguinte, fresca e revigorante na recordação, e uma memória viva dela persistiu dia após dia, juntamente com uma sensação inexplicável de felicidade serena que, sendo parte da própria essência do sonho, inevitavelmente a acompanhava. Não demorei muito a chegar à conclusão de que Tânger tinha de ser o lugar onde mais desejava estar.
(...)
O Norte de África adquirira desde há muito uma aura lendária aos meus olhos; o facto de agora ter decidido lá regressar tornava o sítio mais presente, e fazia ressurgir centenas de pequenas cenas esquecidas que subiam até à minha mente de seu próprio acordo. Certo dia, apanhei um autocarro na Quinta Avenida para ir à parte alta de cidade. Ao chegar a Madison Square, já sabia em que consistiria o romance e qual seria o seu título. Antes da Primeira Guerra Mundial, havia uma canção popular chamada «Down Among the Sheltering Palms», que estava gravada num disco na Casa dos Barcos, em Glenora: a partir dos meus quatro anos, esse era o disco que tocava antes de quaisquer outros sempre que lá ia passar o Verão. Não era a melodia banal que me fascinava, mas sim a estranha palavra «sheltering». De que estavam as palmeiras a proteger as pessoas, e até que ponto podiam estar elas seguras dessa protecção? «Oh, querida, espera por mim / Lá onde o sol se põe às oito...»
O livro ia passar-se no Sara, onde só havia céu, e assim o titulo ia ser The Sheltering Sky. Desta vez, pelo menos, não tive de passar noites em claro à procura do título certo.

Paul Bowles
Memórias de um Nómada