Sonho de um Sonho


(...) Não espanta por isso que encontre um texto de Borges, em Otras Inquisiciones, em que ele retoma o tema do sonho de Coleridge (...): o poema Kublai Khan foi sonhado por Coleridge num Verão de 1797; ao acordar começou a transcrevê-lo, mas foi interrompido por uma visita, o homem que vinha de Porlock, e depois Coleridge foi incapaz de reconstituir os versos que o sonho lhe ditara. (...) Borges interessa-se fundamentalmente pelo facto de o sono poder escrever uma página admirável. Isto é, existirem factos a atestarem o trabalho do inconsciente. E lembra que Stevenson recebeu em sonhos o tema do seu Olalla, e mais tarde o de Jekyll and Hyde.
Mas o mais interessante é o facto de, vinte anos mais tarde, sair em Paris uma história universal de origem persa, redigida por Rashid-ed-Din, e datada do século XIV, e onde se lê: «A leste de Shang-tu, Kublai Kahn erigiu um palácio segundo um plano que tinha visto em sonho.» Donde, um imperador mongol constrói um palácio que sonhou, no século XIII, e no século XVIII um poeta inglês sonha um poema sobre esse palácio. Naturalmente, Borges diz-nos que, no elenco de todas as explicações (incluindo as que nada explicam, e apenas falam do acaso), «as mais sedutoras são as hipóteses que vão além da razão». Isto é, «é lícito supor que a alma do imperador, uma vez destruído o palácio, penetrou na de Coleridge para que ele o reconstruísse por palavras mais duráveis do que os metais e os mármores. O primeiro sonho acrescentou à realidade um palácio; o segundo, que teve lugar quinhentos anos mais tarde, um poema (ou o início de um poema) sugerido pelo palácio; a analogia dos dois sonhos deixa entrever um desígnio: o enorme intervalo de tempo revela um artífice sobrehumano.» Ora, segundo Borges, que razões poderiam existir para que ele parasse a execução do seu desígnio? Nenhumas. Trata-se de fazer penetrar um objecto eterno pelos umbrais do mundo. «Se o esquema se verifica no decurso de uma noite de que os séculos nos separam, alguém sonhará o mesmo sonho, sem suspeitar que outros já o sonharam, e vai dar-lhe a forma de um mármore ou de uma música. Talvez a série de sonhos não tenha fim, talvez a chave esteja no último sonho.»

Eduardo Prado Coelho
Tudo o que não Escrevi Vol.II