Único Bem Patrimonial


(...) uma língua não se possui, não tem proprietários, não pode ser objecto desse gesto generoso e voluntário que consiste em "deixar" em herança a um outrem "esta extraordinária língua" (...) a ligação natural entre língua e nação, e entre língua e povo, foi sempre justificada pelos mitos do enraizamento. A assimilação língua-nação designa geralmente a noção de "génio" da língua. E a etimologia de "génio", o genos grego, está ligado ao nascimento, aos genes. Ocorre aqui lembrar uma entrevista de Hannah Arendt, em 1964, treze anos depois de se ter naturalizado cidadã americana. Depois de ela afirmar que nunca se tinha sentido parte de um povo (nem sequer do povo judaico) nem de uma pátria, o entrevistador pergunta-lhe: "O que resta?". Ela responde: "Só resta a língua", a língua alemã que os seus presumidos e encarniçados proprietários queriam que fosse, a par do sangue, um factor de enraizamento. Hannah Arendt recusava assim as confusões que se estabelecem entre língua e pátria, entre língua e povo. E mostrava que os presumidos proprietários da língua, por mais que se tivessem esforçado por isso, não tinham conseguido deserdá-la porque uma língua herda-se sem que um "nós", ou alguém, a deixe em herança.

António Guerreiro
A Língua e os Seus Proprietários, Acção Paralela, Suplemento Ípsilon, Jornal Público