Espelho Meu...
O poeta persa a quem chamamos Rumi conta, no Masnavi, a história de um homem de uma fealdade abominável que atravessa o deserto a pé.
Na areia, vê qualquer coisa que brilha. É um pedaço de espelho. O homem baixa-se, pega no espelho e olha. Nunca viu um espelho.
— Que horror! — exclama. — Não admira que tenham deitado isto fora!
Atirou o espelho para a areia e prosseguiu o seu caminho.
O espelho chinês
Um espelho é muitas vezes acessório do sonho.
Um lavrador chinês foi à cidade vender o seu arroz. A mulher pediu-lhe:
— Se fazes favor, traz-me um pente.
Na cidade vendeu o seu arroz e foi beber com amigos. No momento de partir, lembrou-se da mulher. Tinha-lhe pedido qualquer coisa, mas o quê? Impossível recordar-se. Comprou um espelho numa loja para senhoras e voltou para a aldeia.
Deu o espelho à mulher e saiu de casa para ir para o campo. A mulher viu-se ao espelho e pôs-se a chorar. A sua mãe, que a viu chorar, perguntou-lhe a razão daquelas lágrimas.
A mulher estendeu-lhe o espelho, dizendo:
— O meu marido reduziu-me a Segunda Esposa.
A mãe pegou por sua vez no espelho, olhou-o e disse à filha:
— Não tens que te inquietar, ela é já muito velha.
Os melhores pintores
(...) os persas contam que foi um dia organizado um concurso de pintura entre dois grupos de artistas. Uns eram chineses, os outros bizantinos.
O príncipe decidiu opô-los num concurso.
Os dois grupos de pintores foram colocados numa sala que um cortinado separava em dois espaços iguais, e encarregados de decorar as duas paredes opostas.
Os chineses pediram uma grande quantidade de pincéis, trinchas e cores de toda a espécie.
Os pintores bizantinos, para surpresa geral, não pediram nada.
No dia da inauguração o rei foi lá com toda a sua corte. Destaparam primeiro os frescos chineses e todos ficaram maravilhados. Via-se ali um trabalho insuperável.
Então destaparam a parede dos bizantinos e nessa parede viram, mas em posição inversa, as mesmas figuras e as mesmas cores da parede pintada pelos chineses. Os bizantinos tinham-se contentado em polir incansavelmente a parede, ao ponto de a terem transformado num espelho cintilante.
As pinturas dos chineses reflectiam-se nesta parede sem sofrerem das asperezas da própria parede e dos defeitos indisfarçáveis do reboco. As imagens ganhavam ali a sua pureza, uma graça, uma leveza tanto mais belas quando eram inesperadas.
A bailarina e o espelho
Uma bela dançarina árabe, conhecida pela sua lascívia, abordou um rico mercador numa manhã de Abril e disse-lhe:
— Na noite passada sonhei que estavas nos meus braços. E tinhas nisso um prazer extremo. Deves-me dois dinares de ouro.
O mercador recusou-se energicamente a pagar. A bailarina fê-lo presente ao cadi, que ouviu relatar o assunto e disse no fim ao mercador:
— Vai buscar dois dinares de ouro e um espelho.
Quando o mercador voltou, o cadi pousou os dois dínares de ouro diante do espelho e disse à mulher:
— Vê a imagem destas duas moedas de ouro no espelho. Ficas assim paga.
O espelho de Gohâ
Quando o Egipto estava sob o domínio do terrível tártaro Tamerlão, que era coxo, vesgo, horrivelmente feio e tinha um pé de ferro, mandou este chamar Gohâ, de quem tinha ouvido falar. Enquanto Tamerlão conversava com Gohâ, entrou o barbeiro daquele que lhe rapou a cabeça e lhe apresentou um espelho para ele se ver.
Ao ver-se, Tamerlão pôs-se a chorar. Gohâ também chorou, gemeu e bateu no chão com as mãos durante duas ou três horas. Tamerlão já há muito tempo tinha acabado de chorar. Gohâ continuava, sem descanso.
Tamerlão perguntou-lhe:
— Mas que tens tu? Eu estou a chorar porque me vi ao espelho desse barbeiro desgraçado e achei-me verdadeiramente feio, horrível. E tu? A que se deve este mar de lágrimas?
E Gohâ respondeu:
— Qual é o espanto? Tu viste-te ao espelho por um breve instante e choraste durante uma hora. Mas eu, que tenho que olhar para ti o dia inteiro, quanto tempo hei-de chorar?
Jean-Claude Carrière (ed.)
Tertúlia de Mentirosos, contos filosóficos do mundo inteiro