Holocausto
Hoje de manhã fui conduzida através de Waltharn. Parece-me uma cidade bastante agradável. Não vi horrores, nem laboratórios de testes, nem unidades de produção, nem matadouros. No entanto, tenho a certeza de que existem. Têm de existir. Simplesmente não se anunciam. Estão à nossa volta, no momento em que vos falo, só que nós, num certo sentido, não sabemos nada acerca deles.
Deixem-me dizê-lo abertamente: estamos todos envolvidos num processo de degradação, crueldade e carnificina que rivaliza com tudo aquilo de que o III Reich foi capaz; na verdade, menoriza-o, no sentido em que o nosso é um processo sem fim, auto-regenerador, que cria coelhos, ratos, aves e gado incessantemente, trazendo-os ao mundo com o propósito de os matar.
(...)
(...)
A questão a colocar não deveria ser: Temos algo em comum razão, consciência de si mesmo, uma alma — com os outros animais? (Com o corolário de, a não a termos, sermos autorizados a tratá-los a nosso bel-prazer, prendendo-os, matando-os, profanando os seus cadáveres.) Regresso aos campos de concentração. O horror particular dos campos, o horror que nos convence de que o que ali se passou constituiu um crime contra a humanidade, não reside no facto de, apesar de partilharem a humanidade com as suas vítimas, os assassinos os terem tratado como piolhos. Isso é demasiado abstracto. O horror consiste nos assassinos se terem recusado a imaginar-se no lugar das suas vítimas, ao contrário de todas as outras pessoas. Disseram: «São eles, naqueles vagões de gado que estrondeiam ao passar.» Não disseram: «Como seria se fosse eu que estivesse a ser transportado naquele vagão de gado?» Não disseram: «Sou eu que vou naquele vagão de gado.» Disseram: «Devem ser os mortos que estão a ser queimados hoje que põem no ar este mau cheiro e são deles as cinzas que caem nas minhas couves.» Não disseram: «Como seria se fosse eu que estivesse a ser queimado?» Não disseram: «Estou a ser queimado, estou a cair, desfeito em cinza.»
J.M. Coetzee
A Vida dos Animais