A Felicidade, o Ventre e o Túmulo
(...) o cérebro, na sua natural posição e estado de serenidade, torna o seu possuidor propício a passar a sua vida trivialmente, sem pensar em subjugar multidões ao seu poder, à sua razão ou à sua visão; e quanto mais ele molda a sua compreensão de acordo com o padrão da erudição humana, menos inclinado ele fica para formar partidos seguidores das suas ideias particulares, porque isso serve de instrução sobre as suas debilidades pessoais, assim como sobre a teimosa ignorância do povo. Mas quando as fantasias de um homem entram em conflito com a sua razão, quando a imaginação começa aos socos com os sentidos, e a compreensão comum assim como o senso comum são mandados embora ao pontapé, o seu primeiro prosélito é ele próprio, e assim que isso for alcançado, não será muito difícil trazer outros, sendo que uma ilusão forte opera sempre com tanto vigor por fora como por dentro. Pois hipocrisia e visões estão para o ouvido e o olho como as cócegas para o tacto. Esses entretenimentos e prazeres que mais valorizamos na vida são enganosos e brincam com os sentidos. Pois se examinarmos aquilo que é geralmente entendido como felicidade, no que diz respeito à compreensão ou aos sentidos, iremos descobrir que todas as suas propriedades e os seus atributos complementares se irão juntar debaixo desta pequena definição: que é a aptidão perpétua para ser bem enganado. E primeiro, em relação à mente ou à compreensão, é evidente que a ficção tem grandes vantagens sobre a verdade; e a razão está mesmo debaixo do nosso nariz, pois a imaginação é capaz de construir cenários mais nobres e criar revoluções mais maravilhosas do que a sorte ou a natureza conseguirão a um determinado custo. (...) se quanto às coisas que têm lugar na imaginação se poderá afirmar, com propriedade, que existem da mesma forma que aquelas assentes na memória; talvez possamos dizer que sim, o que oferece uma grande vantagem à imaginação, pois esta é reconhecida como o ventre das coisas, enquanto a memória não passa do seu túmulo.
Jonathan Swift
A Fábula de um Barril