A História ou o Eterno Retorno: A Cidade das Flores

A CIDADE DAS FLORES
AUGUSTO ABELAIRA
(1957)
Sentado, as pernas cruzadas, uma das mãos no bolso e a outra a brincar com o lápis, Giovanni Fazio observava os passos, para diante e para trás, dum casal de ingleses. Ele — chamar-te-ás John, decidiu — recuara dois ou três metros, e ela — Mary — dirigia-se devagar para os degraus do palácio, sob o olhar indiferente do David. Encostou-se ao pedestal da estátua, tirou o lenço da cabeça e olhou para o marido. Este baixou-se um pouco, apontou demoradamente a máquina e disparou por fim.
Mary virara-se outra vez de costas e Giovanni quis adivinhar-lhe a direcção dos olhos, acompanhá-los depois no voo extasiado que terminava na torre do Palazzo Vecchio. Mas o marido gritara qualquer coisa: interrogativa, ela deu meia volta e viu John, que agitava um braço e abria e fechava a boca. Dizendo o quê? E Mary aproximou-se novamente do David, regressando o marido à posição anterior, a máquina preparada. «Talvez o primeiro retrato fique melhor do que o segundo», murmura Giovanni, como se fosse ele o interessado.
Depois as situações inverteram-se: o marido posou então para a imortalidade. «Em Florença» — dirá aos amigos, de regresso a Londres, e indicando a fotografia. «Ah!» — exclamarão eles amavelmente.
Porquê? Porquê? O desejo insensato de falar com aqueles desconhecidos. Desconhecidos e talvez ridículos, assim, a tirar fotografias! E enquanto bebia o café escaldante, continuou a persegui-los com o olhar.
«Foi aqui que queimaram Savonarola — estará John a dizer. E pensa: — Estas foram as últimas imagens do Savonarola quando o fumo já subia e o ar quente ondulava as casas.»
Fazio deixou um livro em cima da mesa, a marcar o lugar, aproxima-se deles. Não que tenha a intenção de conversar (suas dificuldades, o seu pouco domínio do inglês paralisavam-no), desejava apenas que o vissem. Porquê? A princípio não percebeu. Queria que eles o vissem, queria sentir-se visto, observado.
Mary e John estavam agora na Loggia dei Lanzi, haviam-se sentado a descansar. Ela não era bonita, a boca parecia rasgada. E ele: demasiado magro, demasiado alto, demasiado branco.
Giovanni aproximou-se, tossiu propositadamente para lhes atrair a atenção e deu-se o milagre: Mary e John descobriram-no. E Giovanni compreendeu: era o desejo de sentir uns olhos habituados à liberdade poisarem no seu corpo de escravo. Como se as pupilas que todos os dias o viam o esmagassem: pupilas de escravos, pupilas de homens que temiam dizer o que pensavam — homens mutilados. Mas aqueles olhos frescos e espontâneos e azuis ...!
Desviou com desagrado a vista do Rapto das Sabinas e lentamente desceu as escadas, procurando no chão o movimento veloz da sombra de uma nuvem. Estranha coisa: levantara-se cedo sem sombra de uma nuvem no espírito e, enquanto fazia horas para o encontro com Domenico, fora até à margem do rio, ficou muito tempo a ver dois miúdos a pescar.
Sente o coração apertado; foram aqueles ingleses que lho apertaram. Eles que comiam laranjas, silenciosamente.
De novo sentado em frente do livro aberto, cruza as pernas, mete no bolso uma das mãos e pega no lápis com a outra.
— Chegaste há muito tempo? — perguntou Domenico Villani, puxando uma cadeira, recostando-se depois.
Fazio não respondeu. Procurava os fósforos nas algibeiras do casaco e, não os encontrando, desistiu, meteu outra vez o cigarro na cigarreira.
— Que fizeste ontem à noite? — pergunta.
— Nada. Fiquei em casa. Abri um livro, mas acabei por me deitar. E tu?
Fazio desviou os olhos do casaco azul, já coçado, do amigo, folheou sem grande atenção um jornal. As notícias do estrangeiro: Chamberlain dirigindo-se a Mussolini no banquete do Palácio de Veneza: «É um prazer observar esta Itália poderosa e progressiva que surgiu sob a direcção e inspiração de Vossa Excelência», as tropas nacionalistas a setenta quilómetros de Barcelona. As notícias do país: alguns guerrilheiros mortos na Abissínia, a inauguração de um quartel, um discurso, uma frase. «A igualdade perante a lei é concedida a todos aqueles que ajudem a causa nacional e não recusem a sua colaboração ao Estado». Não estivesse a frase sublinhada por Domenico e Giovanni não teria dado por ela.
Círculo de Leitores, 1980

A CIDADE DAS FLORES
(lido em 1998)