Actos de Adoração: Justine


JUSTINE
OU OS INFORTÚNIOS DA VIRTUDE
MARQUÊS DE SADE
(1787)

Obra-prima da filosofia seria a que nos esclarecesse sobre os meios de que a Providência se serve para atingir os fins que tem em vista relativamente ao homem e que, em seguida, estabelecesse normas de acção com as quais este pobre bípede aprendesse o modo como há-de seguir pelos espinhosos caminhos da vida, de modo a evitar os estranhos caprichos daquela fatalidade a que damos milhentos nomes mas que ainda não fomos capazes de conhecer ou definir.
 Sim, respeitando embora todas as convenções sociais, nunca nos afastando das barreiras que elas levantam, acontece-nos mesmo assim tropeçar nos abrolhos, enquanto vemos os maus colherem apenas rosas. Pessoas haverá destituídas dum certo fundo de virtude comprovada que, colocando-se acima destas observações, dirão ser preferível deixarmo-nos levar pela torrente do que opor-lhe resistência. Dirão que a virtude, por muito bonita que seja, torna-se afinal a pior das opções quando não tem força suficiente para dar luta ao vício e que, num século inteiramente corrupto, o mais seguro é fazer como os outros. Outros mais instruídos, se se quiser, e abusando das luzes que possuem, dirão porventura, como o anjo Jesrad do Zadig, que de todo o mal pode nascer um bem e que podem por isso entregar-se ao mal, uma vez que essa é uma das maneiras de produzir o bem. Acrescentarão alguns que é indiferente, no plano geral, ser-se bom ou ser-se mau; que, se a desgraça acompanha a virtude e se a prosperidade acompanha o crime, visto ser tudo igual no plano da Natureza, vale infinitamente mais juntarmo-nos aos maus que prosperam do que aos virtuosos falhados. 
É muito importante fazer frente a estes perigosos sofismas duma falsa filosofia; é essencial demonstrar que os exemplos de virtude infeliz, apresentados a uma alma corrompida mas dotada ainda de alguns bons princípios, poderão reconduzir essa alma para o bem tão eficazmente como se lhe for mostrado o caminho da virtude semeado de palmas fulgurantes e de recompensas lisonjeiras. É cruel, não há dúvida, pintar toda a série de desgraças que afligem uma mulher boa e sensível, respeitadora da virtude, e, por outro lado, a torrente de prosperidades concedida aos que esmagam e atormentam a dita mulher. Mas se for bom o resultado da descrição de tais fatalidades, sentir-se-á algum remorso de a termos realizado? Que mal pode haver em se escrever uma coisa cujo resultado, para o sábio que a leia frutuosamente, seja a utilíssima lição da submissão ao poder da Providência ou a fatal advertência de que, o mais das vezes, é para nos ensinar o caminho do dever, que o Céu atinge, mesmo ao nosso lado, a criatura que sabemos ter cumprido melhor o seu dever? 
Tais são os sentimentos que vão presidir aos nossos trabalhos e é na consideração desses motivos que ao leitor pedimos indulgência perante os sistemas erróneos colocados na boca das nossas personagens e das situações muitas vezes, Fortes que, por mor da verdade, pintámos ante os seus olhos.

Antígona, 2001
trd. Manuel João Gomes
(lido em 2005)