Actos de Adoração: Lolita


LOLITA
VLADIMIR NABOKOV
(1955)

Lolita, luz da minha vida, fogo da minha virilidade. Meu pecado, minha alma. Lo-li-ta: a ponta da língua faz urna viagem de três passos pelo céu da boca abaixo e, no terceiro, bate nos dentes. Lo. Li. Ta. 
Pela manhã, um metro e trinta e dois a espichar dos soquetes; era Lo, apenas Lo. De calças práticas, era Lola. Na escola, era Dolly. Era Dolores na linha pontilhada onde assinava o nome. Mas nos meus braços era sempre Lolita. 
Teve uma precursora? Teve, sim, teve. Na verdade, talvez até não houvesse Lolita nenhuma, se certo Verão, eu não tivesse amado uma rapariga-menina inicial. Num principado junto ao mar. Oh, quando? Quase tantos anos antes de Lolita nascer quantos eu contava nesse Verão. É sempre de esperar num assassino uma prosa de estilo caprichoso. 
Senhoras e senhores do júri, a prova número um é o que os serafins, os simples, mal informados e nobremente alados serafins, cobiçaram. Reparai neste emaranhado de espinhos.
Nasci em Paris, em 1910. O meu pai era pessoa branda e indolente, uma salada de genes rácicos: cidadão suíço de mista ascendência franco-austríaca, com umas gotas do Danúbio nas veias. Daqui a um instantinho mostrar-lhes-ei alguns deliciosos postais ilustrados de um azul muito brilhante. Era dono de um luxuoso hotel da Riviera. O seu pai e dois avós tinham vendido vinho, jóias e seda, respectivamente. Aos trinta anos desposou urna jovem inglesa, filha de Jerome Dunn, o alpinista, e neta de dois párocos de Dorset, especialistas em assuntos obscuros — paleopedologia, um, e harpas eólicas, outro. A minha muito fotogénica mãe morreu num singular acidente (piquenique, faísca) quando eu tinha três anos e, exceptuando uma bolsa de cálida ternura no mais negro passado, nada subsiste dela nos vales e fissuras da memória, sobre os quais, se ainda podeis suportar o meu estilo (estou a escrever vigiado), o sol da minha infância deixou de brilhar: todos vós conheceis, certamente, esses fragrantes restos de dia suspensos, com os mosquitos, sobre alguma sebe em flor, ou subitamente penetrados e atravessados pelo caminhante, no sopé de um monte, no crepúsculo estival; um calor de velo macio, mosquitos dourados. 
A irmã mais velha da minha mãe, Sybil, que um primo de meu pai desposara e depois abandonara, servia na minha família imediata, como uma espécie de preceptora e governanta sem salário. Alguém me contou, mais tarde, que ela estivera apaixonada pelo meu pai e que, num dia chuvoso, ele se aproveitara despreocupadamente disso e já esquecera tudo quanto o tempo melhorara. Eu gostava muitíssimo dela, apesar da severidade — da fatal severidade — de algumas das suas regras. Talvez desejasse fazer de mim, a seu tempo, um viúvo melhor do que o meu pai. A tia Sybil tinha olhos azuis, orlados de cor-de-rosa, e uma tez de cera. Fazia versos. Era poeticamente supersticiosa. Dizia saber que morreria pouco depois do meu décimo sexto aniversário, e morreu. O marido, um grande caixeiro-viajante de perfumes, passava a maior parte do tempo na América, onde acabou por constituir uma firma e comprar alguns bens imóveis. 
Cresci, criança saudável e feliz, num mundo alegre de livros ilustrados, areia limpa, laranjeiras, cães bonacheirões, paisagens marítimas e rostos sorridentes. O magnífico Hotel Mirana girava em meu redor como uma espécie de universo particular, um cosmo pintado de branco dentro do outro, maior e azul, que cintilava no exterior. Desde a mulher de avental que areava as panelas até ao potentado vestido de flanela, toda a gente me adorava e enchia de mimo. Idosas senhoras americanas, apoiadas às suas bengalas, inclinavam-se para mim como torres de Pisa. Princesas russas arruinadas, que não podiam pagar ao meu pai, ofereciam-me bombons caros. Ele, o mon cher petit papa, passeava comigo de barco e de bicicleta, ensinava-me a nadar, a mergulhar e a praticar esqui aquático e lia-me o D. Quixote e Os Miseráveis, e eu adorava-o e respeitava-o e sentia-me contente, por ele, sempre que ouvia as criadas discutirem acerca das suas amiguinhas, belas e gentis criaturas que me ligavam muita importância, me apaparicavam e derramavam deliciosas lágrimas por causa da minha alegre orfandade. 

Teorema, 1985
(estórias)
trd. Fernanda Pinto Rodrigues


LOLITA
(lido em 2003)