Actos de Adoração: O Retrato de Dorian Gray


O RETRATO DE DORIAN GRAY
OSCAR WILDE
(1890)

Um intenso perfume a rosas inundava o ateliê e, quando a suave brisa de Verão perpassou pelas folhas das árvores do jardim, agitando-as, a porta aberta deixou entrar o penetrante odor dos lilases e o aroma mais delicado da flor cor-de-rosa do espinheiro. 
Do canto do divã repleto de alforges persas onde estava reclinado a fumar, como era seu hábito, incontáveis cigarros, Lorde Henry Wotton vislumbrava a luminosidade das flores de um laburno que tinham a cor e o cheiro do mel e cujos ramos tremeluzentes mal pareciam conseguir suportar o fardo de uma beleza como a sua, tão semelhante ao esplendor de uma chama; de vez em quando as extravagantes sombras de pássaros em pleno voo esgueiravam-se pelos longos cortinados de seda tussá que cobriam, completamente corridos, a grande janela, criando uma espécie de efeito japonês que lhe falia lembrar certos pin-tores de Tóquio, com um rosto dc uma palidez cor de jade e que, servindo-se dc uma arte que é necessariamente imóvel, procuram comunicar uma sensação de rapidez e movimento. O zumbido insistente das abelhas, abrindo caminho pela grande extensão de relva ainda por aparar, ou voando em círculos, com monótona insistência, em redor das gavinhas douradas e cobertas de pó das videiras virgens que aqui e ali nasciam, parecia contribuir ainda mais para que a quietude reinante fosse ainda mais opressiva. O vago bramido de Londres era como uma nota musical recorrente oriunda de um órgão distante. 
No centro da sala, preso a um cavalete, encontrava-se o retrato de corpo inteiro de um jovem dc uma beleza extraordinária e, à sua frente, a uma curta distincia, estava sentado o próprio pintor, Basil Hallward, cujo repentino desaparecimento uns anos antes causara, à época, grande agitação pública e originara muitas e estranhas conjecturas. 
Ao apreciar a grácil e delicada configuração que com tanta arte transmitira ao seu trabalho, o pintor permitiu que lhe aflorasse ao rosto um sorriso de prazer, que não parecia disposto a esvanecer-se. Mas levantou-se de repente e, fechando os olhos, pousou os dedos sobre as pálpebras, como se procurasse aprisionar mentalmente um estranho sonho de que receava despertar. 
«É a tua melhor obra, Basil, a melhor coisa que até hoje fizeste», disse Lorde Henry, langoroso. «Tens de enviá-la para a Grosvenor no ano que vem. A Academia é demasiado abrangente, demasiado vulgar. Sempre que lá fui, ou tinha tanta gente que os quadros nem se viam, o que é horrível, ou tantos quadros que era impossível ver as pessoas, o que é ainda pior. A Grosvenor é mesmo o único sitio indicado.»
«Não me parece que o vá mandar seja para onde for», respondeu Hallward atirando a cabeça para trás naquele seu jeito tão invulgar que fazia com que os amigos tanto se rissem dele em Oxford. «Não, não vou mandá-lo para parte nenhuma.» 
Lorde Henry ergueu o sobrolho e olhou para ele com ar de espanto através das espirais de fumo azulado que se erguiam no ar em caprichosas volutas provenientes do seu cigarro carregado de ópio. «Não vais mandá-lo para parte nenhuma? Mas porquê meu caro amigo? Por alguma razão especial? Que criaturas tão esquisitas são os pintores! São capazes de tudo para que alguém repare neles. Mal acabam de pintar um quadro, a primeira coisa que querem fazer é verem-se livres dele. É uma tolice da tua pane porque neste mundo só existe uma coisa pior do que falarem de nós, que é, precisamente, não falarem de nós. Um retrato como este poderia elevar-te a uma posição muito superior a todos os jovens de Inglaterra e provocar, além do mais, a inveja dos velhos, se é que os velhos são ainda capazes de ter emoções.» 
«Já sei que te vais rir de mim», respondeu ele, «mas a verdade é que não me é possível expô-lo. Pus nele demasiado de mim mesmo.» 
Lorde Hcnry espreguiçou-se no divã e riu. 
«Sim, já sabia que o farias, mas isso em nada invalida o que eu disse.» 
«Puseste nele demasiado de ti mesmo! Com franqueza, Basil, não te sabia tão vaidoso; a verdade é que não vejo qualquer semelhança entre ti, com esses teus traços fortes e irregulares e o teu cabelo negro-azeviche, e este jovem Adónis que parece ser feito de marfim e pétalas de rosa. Vamos lá ver, meu caro Basil: ele é um Narciso e tu - bem, claro que tens essa tua expressividade intelectual e tudo isso... mas a beleza, a verdadeira beleza, termina onde a expressividade intelectual começa. O intelecto é, em si mesmo, uma forma de exagero que destrói a harmonia de qualquer rosto. No momento em que nos sentamos para pensar, passamos a ser só nariz, ou só testa, ou outra qualquer coisa bastante horrenda. Repara nos homens de sucesso em qualquer área da cultura. Já viste bem como são perfeitamente hediondos? À excepção, claro está, dos homens da Igreja. Bem sei que, quando pertencem à Igreja, os homens não pensam, um bispo de oitenta anos continua a dizer o que o mandaram dizer quando tinha dezoito e, como consequência directa, continua sempre a parecer encantador. O teu jovem amigo misterioso, cujo nome nunca me disseste, mas cujo retrato verdadeiramente me fascina, nunca pensa. Tenho a certeza absoluta. É uma criatura desmiolada, de uma beleza extraordinária, que deveria estar sempre aqui no Inverno, quando não temos flores para admirar, mas também no Verão, quando precisamos de algo que acalme o intelecto. Não te lisonjeies, Basil: não te pareces minimamente com ele.? 
«Não me percebes, Harry«, respondeu o artista. «Claro que não sou parecido com ele. Sei-o muito bem. A verdade é que não gostaria nada de me parecer com ele. Encolhes os ombros, tu? Estou a dizer-te a verdade. Todo aquele que é, física ou intelectualmente, diferente está imbuído de uma aura de fatalidade, essa mesma fatalidade que parece perseguir encarniçadamente os panos vacilantes dos reis de que reza a História. O melhor é não sermos diferentes de quem nos rodeia. Os feios e os estúpidos são quem mais beneficia com as coisas boas deste mundo. Podem ficar sentados o tempo que quiserem a olhar, pasmados, para o que se passa à sua volta. Se a vitória é coisa que não conhecem, é-lhes, pelo menos, poupada a sensação da derrota. Vivem como todos nós deveríamos viver, imperturbados, indiferentes e sem a menor inquietação. Não prejudicam os outros e ninguém os prejudica. A sua posição social e a sua riqueza, Harry; a minha inteligência, seja ela o que for - a minha arte, valha ela o que valer; a beleza de Dorian Gray - todos nós havemos de sofrer pelo que os deuses nos concederam. E sofrer terrivelmente,»
«Dorian Gray? É assim que ele se chama?» perguntou Lord Henry atravessando o ateliê na direcção de Basil Hallward.

Guerra & Paz, 2024
(Clássicos)
trd. Rui Santana Brito

O RETRATO DE DORIAN GRAY
(trd. Margarida Vale Gato)
(lido em 2003; 2019)