Actos de Adoração: Siddartha


SIDDHARTHA
(Um Poema Indiano)
HERMANN HESSE
(1922)

O Filho do Brâmane 
Na penumbra da casa, ao sol nas margens do rio, junto aos barcos, à sombra do bosque, à sombra das figueiras, cresceu Siddhartha, o belo filho do brâmane, o jovem falcão, na companhia de Govinda, o seu amigo, o filho do brâmane. O sol queimava os seus ombros claros nas margens do rio, durante o banho, durante as abluções sagradas, durante os sacrifícios sagrados. As sombras do mangal corriam pelos seus olhos negros durante as brincadeiras infantis, durante as canções de sua mãe, durante os sacrifícios sagrados, durante os ensinamentos de seu pai, o erudito, durante o discurso dos sábios. Havia já muito tempo que Siddhartha participava nas conversas com os sábios, que treinava com Govinda a retórica, que treinava com Govinda a arte da contemplação, a prática da meditação. Já sabia pronunciar silen-ciosamente o Om, a palavra das palavras; deixava-o penetrar silenciosamente em si com a inspiração, exalava-o silenciosamente com a expiração, com a totalidade da sua alma, a fronte envolta no brilho do espírito lúcido. Já reconhecia Atman no fundo do seu ser, imperecível, uno com o universo. 
O coração do seu pai alegrava-se com o filho, inteligente e sedento de sabedoria; via crescer nele um grande sábio e sacerdote, um príncipe entre os brâmanes. 
O peito de sua mãe sofria ao olhar para ele, ao vê-lo caminhar, sentar-se perto dela e levantar-se; Siddhartha, o forte, o belo, aquele que caminha com pernas elegantes, aquele que a saúda com delicadeza. 
O coração das jovens filhas dos brâmanes agitava-se de amor quando Siddhartha passava pelas ruas da cidade, com a sua fronte luminosa, com o seu olhar real, com a sua anca delgada. 
Mais do que todos eles, no entanto, amava-o Govinda, o seu amigo, o filho do brâmane. Amava o olhar de Siddhartha e a sua voz gentil, amava o seu andar e a perfeita graciosidade dos seus movimentos, amava tudo o que Siddhartha dizia e fazia e, acima de tudo, amava o seu espírito, os seus pensamentos elevados e ardentes, os seus desejos impetuosos, a sua vocação nobre. Govinda sabia: este não viria a ser um brâmane vulgar, um preguiçoso funcionário encarregue dos sacrifícios, um ganancioso comerciante de encantamentos, um orador vaidoso e vazio, um sacerdote maldoso e pérfido, tal como não viria a ser uma ovelha boa e tola no rebanho da multidão. Não, e também ele, Govinda, não queria tornar-se um tal brâmane, como outros mil que existiam. Queria seguir Siddhartha, o bem-amado, o magnífico. E quando Siddhartha, enfim, se tornasse um deus e entrasse no reino resplandecente, Govinda queria segui-lo, como seu amigo, como seu companheiro, como seu servidor, seu pajem, sua sombra. 
Assim Siddhartha era amado por todos. A todos alegrava, a todos tornava felizes.

Oficina do Livro (Casa das Letras), 2008
trd. Pedro Miguel Dias 


SIDDHARTHA
(lido em 1995)