American Tale: Fall River e outros contos dispersos

FALL RIVER
E OUTROS CONTOS DISPERSOS
JOHN CHEEVER
(1931-49)
Fall River
Havia dois anos que as pessoas o sabiam, mas no inverno tornou-se óbvio. As fábricas tinham parado e as rodas enormes mantinham-se imóveis junto aos tetos. Os teares amontoavam-se no chão como a maquinaria sem préstimo num velho teatro de ópera. Pelos pavimentos, nas traves e nos flancos brilhantes de aço, o véu da teia estava coberto de pó como neve antiga.
A casa onde vivíamos ficava numa encosta íngreme e podíamos ver os pântanos salgados e o caudaloso rio cinzento a caminho do mar. Era inverno, mas não tinha caído neve, e durante toda a estação as estradas mantiveram-se poeirentas, o céu carregado, e as árvores tinham largado as folhas para o inverno. Mas o céu manteve-se carregado e as estradas poeirentas por umas boas três semanas, e quando a primavera chegou era difícil lembrarmo-nos da neve, tão pouca ela fora.
A cidade escura erguia-se do rio e todo o inverno as torres da igreja de madeira se mantiveram apontadas ao céu como dedos enormes. Da nossa janela víamos as pontas da colina sobressaindo do rio e as casas sujas estragadas pelo fumo e comidas pelo sol. Havia já um ano que o sabíamos e que as pessoas falavam de um inverno seco. Era já primavera. O rio cheio seguia para o mar. As enormes rodas da maquinaria esperavam imóveis contra o teto. As chaminés redondas rompiam pelos ares vazias sem o penacho escuro do fumo.
O nosso quarto ficava no quarto andar de uma casa enorme de tijolo. Eram muitíssimas as pessoas que não conseguiam pagar a renda e a senhoria tornava o silêncio penoso com as suas lamentações. Havia um homem no terceiro andar que tinha emprego e ganhava dez dólares por semana. À noite, víamo-lo sentado na beira da cama lançando um olhar vagaroso à roda do quarto vazio. A senhoria lacrimejava quando o via e dizia-lhe que precisava de comer e que ele tinha de pagar a renda. Que ele ia ter de pagar a renda. A cara do homem era quadrada e tinha o cabelo direito como madeira lisa. Vai ter de pagar a renda, gritava a senhoria no pequeno patamar fora da porta dele. Ele olhava-a e fechava a porta suavemente. Pago-lhe na próxima semana. A cabeça baralhava-se-lhe com a impossibilidade da sua dívida. Com a cara descomposta da senhoria a gritar pela renda.
Nós não pagávamos a renda havia três semanas, mas quando eram duas pessoas era diferente. Tínhamos despachado os nossos livros em grandes caixotes um mês antes. Eram coisas que não gostávamos de fazer, mas também neste prédio alto de tijolo as pessoas não eram as mesmas. A senhoria seria capaz de nos tirar os livros e a máquina de escrever para os vender. Os cigarros não ficavam seguros se os esquecíamos em cima da mesa um minuto que fosse.
Um velho no andar de baixo não ia para a fábrica há seis meses. A princípio não conseguia aguentar sem fazer nada e levantava-se todos os dias e atravessava o rio para ir à cidade à procura de trabalho. Quando percebeu que não havia trabalho, continuou a levantar-se pela manhã e andava às voltas pela cidade o dia todo voltando a atravessar o rio à noite conversando com os homens que tinham emprego. Tinha andado nisto dois meses quando deu um tombo e feriu uma perna. Quando ficou melhor da perna tinha perdido toda a vontade de andar. Só saía do quarto para comprar comida e depois voltava e comia. Via-se que quando as rodas começassem a girar e as correias compridas a estremecer com os sacões do movimento ele não voltaria para a fábrica. Vivia no seu quarto, saía para comprar comida e regressava. Ninguém sabia o que ele fazia no quarto o dia inteiro. Não se ouvia movimento nenhum.
As pessoas tinham-se preparado para um inverno seco com pouco dinheiro e sem comida. E assim tinha sido. O inverno chegara e fora-se. As fábricas continuavam vazias. O rio corria como sempre, mas não havia fumo sobre a cidade. Meia cidade continuava sem trabalho. O rio e as estações iam e vinham, mas a maquinaria con-tinuava calada e nós não sabíamos quando voltaria a mover-se.
Sextante, 2011
(Ficção)
trd. José Lima
(lido em 2025)