Anatomia de um Crime: A Sangue Frio


A SANGUE FRIO
TRUMAN CAPOTE
(1966)

A aldeia de Holcomb fica situada no meio dos planaltos de trigo, no Oeste do Kansas, numa área isolada a que os demais habitantes do Estado chamam «lá para diante». Perto de setenta milhas a leste da fronteira do Colorado, com um céu azul intenso e um ar transparente, de deserto, possui uma atmosfera que lembra mais o Extremo Oeste do que o Médio Oeste. A pronúncia local tem um sotaque da planície, um nasalado próprio dos rancheiros, e os homens, na sua maioria, vestem calças justas de fronteiriços, chapéus de feltro de aba larga, botas de tacão alto com biqueiras aguçadas. A terra é plana e os horizontes são incrivelmente vastos; os cavalos, as manadas de gado e o branco aglomerado dos silos a erguerem-se graciosamente no céu como outros tantos templos gregos avistam-se muito antes de o viajante chegar perto deles. 
Também a aldeia de Holcomb se divisa a grande distância. Não que ela tenha muito que ver. É constituída apenas por um simples e despretensioso agrupamento de edifícios, cortado ao meio pela linha do caminho-de-ferro de Santa Fé, uma terreola limitada ao sul pelo curso negro do rio Arkansas (que se diz como se escreve), a norte pela auto-estrada n.° 50, e a leste e a oeste por terras planas e campos de trigo. Depois das chuvas ou quando se derrete a neve, as suas ruas de terra batida, sem nome, sem árvores a ensombrá-las, mal pavimentadas, transformam-se em nojentos canais de lama. Num dos extremos da povoação ergue-se o edifício de estuque que ostenta no telhado um reclame luminoso com a palavra — DANÇA —, porém há muito tempo que o dancing fechou e o anúncio se não acende. Perto deste fica um outro edifício que apresenta uma tabuleta não menos insólita, pintada a oiro manchado sobre uma janela suja — BANCO DE HOLCOMB. Este fechou em 1933 e as suas salas foram transformadas em apartamentos. É um dos dois prédios de apartamentos que a terra possui, sendo o segundo um casarão desmantelado a que chamam o «Professorado», visto que grande parte do corpo docente da escola secundária da cidade ali vive. As restantes habitações de Holcomb são na sua maioria casas de um só andar, com um telheiro na frente. 
Perto da estação do caminho-de-ferro, uma mulher magra, vestida com um casaco de pele de búfalo, calças de cotim e botas de rancheiro, desempenha as funções de empregada dos correios num edifício a cair aos bocados. A estação oferece um aspecto igualmente melancólico, com a pintura amarela toda lascada; o «Chefe», o «Superchefe» e «El Capitan» passam lá todos os dias, mas nenhum desses célebres expressos ali pára. Nem tão-pouco qualquer comboio de passageiros, apenas um ou outro de mercadorias. Na auto-estrada há dois postos de gasolina, um que acumula as funções de mercearia, aliás modestamente abastecido, ao passo que o outro também serve de café, o Café Hartman, no qual a Sr.ª Hartman, a proprietária, vende sanduíches, café, bebidas não alcoólicas e garrafas de cerveja (em Holcomb, como em todo o Estado de Kansas, vigora a «lei seca»). 

Leya (Dom Quixote), 2008
trd. Maria Isabel Braga
(lido em 2010)