Contemporânea: Eles Eram Muitos Cavalos

ELES ERAM MUITOS CAVALOS
LUIZ RUFFATO
(2001)
I. CABEÇALHO
São Paulo, 9 de maio de 2000.
Terça-feira.
2. O TEMPO
Hoje, na Capital, o céu estará variando de nublado a parcialmente nublado.
Temperatura — Mínima: 14°; Máxima: 23°.
Qualidade do ar oscilando de regular a boa.
O sol nasce às 6h42 e se põe às 17h27.
A lua é crescente.
3. HAGIOLOGIA
Santa Catarina de Bolonha, nascida em Ferrara, na Itália, em 1413, foi abadessa de um mosteiro em Bolonha. No Natal de 1456, recebeu o Menino Jesus das mãos de Nossa Senhora. Dedicou sua vida à assistência aos necessitados e tinha, como única preocupação, cumprir a vontade de Deus. Morreu em 1463.
4. A CAMINHO
O Neon vaga veloz por sobre o asfalto irregular, ignorando ressaltos, lombadas, regos, buracos, saliências, costelas, seixos, negra nesga na noite negra, aprisionada, a música hipnótica, tum-tum tum-tum, rege, o tronco que trança, tum-tum tum-tum, sensuais as mãos des-lizam no couro do volante, tum-tum tum-tum, o corpo, o carro, avançam, abduzem as luzes que luzem à esquerda à direita, um anel comprado na Portobello Road, satélite no dedo médio direito, tum-tum tum-tum, o bólido zune na direção do aeroporto de Cumbica, ao contrário cruzam faróis de ônibus que convergem de toda parte,
mais neguim pra se foder
um metro e setenta e dois centímetros está no certificado de alistamento militar calça e camisa Giorgio Armani, perfume Polo borrifado no pescoço, sapatos italianos, escanhoado, cabelo à-máquina-dois, Rolex de ouro sob o tapete,
mais neguim pra se foder
ela deve estar chegando, uma dessas estrelas que sobrevoam a estrada, a mulher, o patrão
compromisso inadiável em brasília expliquei pra
sim, claro, ele o trata
como filho que gostaria de ter tido
sim, claro, o filho um babaca o cocainômano passeia sua arrogância pelas salas da corretora,
sim, claro, o filho um babaca o cocainômano desfila seus esteroides por mesas de boates e barzinhos — que já quebrou —, por rostos de leões-de-chácara e de garotas de programa — que já quebrou —, por maquinas de escrever de delegacias — que também já
sim mas é meu filho
e suborna a polícia,
o delegado,
o dono da boate,
as garotas de programa,
os leões-de-chácara,
sim mas é meu filho
sim, claro, a filha mora no Embu, macrobiótica, artista plástica esotérica, os quadros sempre os mesmos
quem não tem olhos pra ver
riscos vermelhos, histéricos, espasmódicos, grossos, finos, fundo branco
não tem olhos pra ver
uma vez comeu ela horrível no estúdio entre pincéis e latas de tinta sobre uma mesa onde jazia esticada uma imensa tela em branco
isso é arte
ela cheiro de incenso
maconha é natural
nua sob a bata indiana, restos de sêmen na superfície branca
isso é arte
mais neguim pra se foder
amuou num canto arrependida? não passa de um
empregadinho
sim, mas o pai me adora
um profissional competente
porque ganho dinheiro pra ele na bolsa
um apartamento enorme em moema um por andar três suítes contratei um desses veados dinheiro não é problema ele montou um circo o mulherio estranha aí eu falo a decoração é do fulano elas têm orgasmo
Tinta da China, 2018

ELES ERAM MUITOS CAVALOS
(lido em 2006)