Contemporânea: À Espera dos Bárbaros

À ESPERA DOS BÁRBAROS
J.M. COETZEE
(1980)
Nunca vi nada semelhante: dois pequenos discos de vidro numa armação metálica, em frente dos seus olhos. Será cego? Se o fosse, eu admitiria que os quisesse esconder. Mas não é. Os discos são escuros, de fora parecem opacos, mas pode ver através deles. Diz-me que são um novo invento. «Protegem os olhos do brilho do Sol», acrescenta. «Evitam que se esteja sempre com os olhos tortos. Temos menos dores de cabeça. Repare.» Toca ao de leve os cantos dos olhos. «Sem rugas.» Volta a pôr os óculos. É verdade. A sua pele é a de um homem mais novo. «Em casa toda a gente os usa.»
Estamos sentados no melhor quarto da estalagem, com um frasco e uma tigela de nozes à nossa frente. Não discutimos a razão da sua vinda. É uma emergência, e isso basta. Falamos de caça. Conta-me da sua última grande caçada, quando milhares de veados, porcos e ursos foram abatidos: tantos que uma montanha de carcaças ficara a apodrecer («O que era uma pena»). Falo-lhe dos grandes bandos de gansos e patos, que todos os anos descem até ao lago nas suas migrações, e das maneiras nativas de lhes preparar armadilhas. Sugiro levá-lo à pesca, à noite, num barco nativo. «É uma experiência que não se deve perder», digo; «os pescadores empunham archotes e tocam tambores sobre as águas, para atrair os peixes às redes.» Concorda, meneando a cabeça. Fala-me de um lugar que visitou, algures na fronteira, onde as pessoas comem certas cobras como se fosse um grande manjar, e também de um antílope que caçou.
Move-se ao acaso, entre o mobiliário pouco familiar, sem tirar os óculos escuros. Retira-se cedo. Está alojado nesta estalagem porque é a melhor acomodação que a cidade lhe oferece. Fiz sentir ao pessoal que se trata de um visitante iluste. «O coronel Joll pertence ao Terceiro Gabinete», informo-os. «O Terceiro Gabinete é, hoje em dia, a divisão mais importante da Guarda Civil.» No fim de contas é isto que ouvimos há muito, pelas conversas que nos chegam da capital. O proprietário concorda e as criadas baixam a cabeça. «Devemos causar-lhe boa impressão.»
Levo a minha esteira para o topo das muralhas, onde a brisa da noite alivia do calor. O luar permite-me distinguir as silhuetas dos que dormem sobre os telhados das casas da cidade. Oiço ainda, sob as nogueiras da praça, o murmúrio de conversas. Como um pirilampo, um cachimbo brilha na escuridão, diminui e volta a brilhar. O Verão encaminha-se lentamente para o fim. Os pomares gemem com o seu peso. Desde rapaz que não vejo a capital.
Acordo antes do alvorecer e, pé ante pé, passo entre os soldados adormecidos nos degraus que, agitando-se e suspirando, sonham com as mães e as amadas. Do céu, contemplam-nos milhares de estrelas. Aqui, estamos verdadeiramente no tecto do mundo. Despertos na noite, no vazio, ficamos deslumbrados.
A sentinela do portão está sentada, de pernas cruzadas, profundamente adormecida, embalando o seu mosquete. O quarto do porteiro fechado, a sua carroça lá fora. Passo adiante.
Dom Quixote, 2003
(Ficção Universal)
trd. José Agostnho Baptista

À ESPERA DOS BÁRBAROS
(lido em 2005)