Contemporânea: Inventar a Solidão


INVENTAR A SOLIDÃO
PAUL AUSTER
(1982)

Um dia há vida. Um homem, por exemplo, de perfeita saúde, nem sequer velho, nenhuma história de doenças. Tudo está como sempre esteve, como sempre estará. Ele passa de um dia a outro, não se ocupa de outra coisa senão dos seus assuntos, sonha apenas com a vida que tem à sua frente. E então, de súbito, acontece que há morte. Um homem solta um pequeno suspiro, afunda-se na sua cadeira, e é a morte. O carácter súbito desse facto não deixa o menor espaço ao pensamento, não dá à mente a menor hipótese de procurar uma palavra capaz de a confortar. A única coisa com que ficamos é a morte, o irredutível facto da nossa própria mortalidade. A morte depois de uma longa doença, podemos aceitá-la com resignação. Mesmo a morte acidental, podemos imputá-la ao destino. Porém, o facto de um homem morrer sem nenhuma causa evidente, o facto de um homem morrer simplesmente porque é um homem, deixa-nos tão perto da invisível fronteira entre vida e morte que já não sabemos de que lado estamos. A vida converte-se em morte e é como se esta morte sempre tivesse sido dona e senhora desta vida. Morte sem aviso. O que é o mesmo que dizer: a vida pára. E pode parar a qualquer momento.
 
Recebi a notícia da morte do meu pai há três semanas. Era sábado de manhã e eu estava na cozinha a fazer o pequeno-almoço para o meu filho Daniel. A minha mulher dormia ainda no piso de cima, quente sob as cobertas, desfrutando umas horas extra de sono. O Inverno no campo: um mundo de silêncio, fumo da madeira, brancura. A minha cabeça estava cheia de pensamentos sobre as páginas que escrevera na noite anterior e eu delineava já a tarde, o período do dia em que poderia voltar ao trabalho. E foi então que o telefone tocou. Soube nesse mesmo instante que havia um problema. Ninguém telefona às oito da manhã de um sábado, a menos que seja para dar notícias que não podem esperar. E notícias que não podem esperar são sempre más notícias. 
Não fui capaz de articular um único pensamento elevado. 

Ainda antes de fazermos as malas e de partirmos para a nossa viagem de três horas até New Jersey, eu sabia que teria de escrever sobre o meu pai. Não tinha nenhum plano, nenhuma ideia precisa acerca do que isso significava. Nem sequer consigo lembrar-me de ter tomado uma decisão nesse sentido. Estava simplesmente ali, uma certeza, uma obrigação que começou a impor-se no instante em que recebi a notícia. Pensei: o meu pai partiu. Se não agir rapidamente, toda a sua vida desaparecerá com ele. 
Olhando agora para trás, mesmo com uma distância tão curta como três semanas, creio que se tratou de uma reacção particularmente curiosa. Eu sempre imaginara que a morte me paralisaria, que me imobilizaria de dor. Porém, agora que a morte viera, não derramava nenhuma lágrima, não me sentia como se o mundo tivesse desabado à minha volta. De um estranho modo, eu estava muito bem preparado para aceitar esta morte, apesar do seu carácter súbito. O que me perturbava era outra coisa, algo que não tinha nada a ver com a morte ou com a minha reacção perante a morte: a percepção de que o meu pai não deixara nenhum vestígio. 
O meu pai não tinha mulher, uma família que dependesse dele, ninguém cuja vida pudesse ser alterada pela sua ausência. Um breve momento de choque, talvez, da parte de amigos dispersos, consternados tanto pela ideia de que a morte é caprichosa como pela perda do amigo, seguido de um curto período de luto, e depois nada. No fim, seria como se ele nem sequer tivesse vivido. 
Mesmo antes da sua morte, ele estivera ausente, e há muito que as pessoas mais chegadas tinham aprendido a aceitar essa ausência, a encará-la como a qualidade fundamental do seu ser. Agora que ele partira, o mundo não teria qualquer dificuldade em absorver o facto de que ele partira para sempre. A natureza da sua vida preparara o mundo para a sua morte — fora uma espécie de morte por antecipação — e, se e quando fosse lembrado, seria uma vaga, obscura, recordação, não mais que uma vaga, obscura, recordação. 
Desprovido de paixão, fosse por uma coisa, por uma pessoa, ou por uma ideia, incapaz ou avesso a revelar-se a si mesmo fossem quais fossem as circunstâncias, conseguira manter-se longe da vida, conseguira evitar a imersão no âmago das coisas. Comia, ia para o trabalho, tinha amigos, jogava ténis, e, no entanto, apesar de tudo isso, ele não estava lá. No sentido mais profundo, mais inalterável, da palavra, ele era um homem invisível. Se, quando era vivo, eu andava sempre à procura dele, sempre a tentar encontrar o pai que não estava lá, agora que está morto, sinto-me ainda como se tivesse de continuar à sua procura. A morte não mudou coisa nenhuma. A única diferença é que o meu tempo se esgotou.

Asa, 2004
(Vozes do Mundo)
trd. José Vieira de Lima

A SOLIDÃO REINVENTADA
(trd. Ana Luísa Faria)
(lido em 2000)