Contemporânea: Leviathan


LEVIATHAN
PAUL AUSTER
(1992)

Há seis dias, um homem foi morto por uma explosão na berma de uma estrada algures no norte do Wisconsin. Não houve testemunhas, mas tudo indica que estava sentado no chão, junto ao seu carro, quando a bomba que estava a montar explodiu acidentalmente. Segundo o relatório médico-legal que acaba de ser divulgado, o homem teve morte instantânea. O corpo voou em dezenas de pedaços, de tal modo que foram encontrados bocados do cadáver a quinze metros do local da explosão. Até hoje (4 de Julho de 1990), ninguém parece ter a menor ideia de quem era o morto. O FBI, em colaboração com a polícia local e agentes do Departamento de Álcool, Tabaco e Armas de Fogo, iniciou as suas investigações procedendo a um exame do carro, um Dodge azul de sete anos com matrícula do Illinois, mas depressa ficou a saber que o veículo fora roubado — surripiado em pleno dia, a 12 de Junho, de um parque de estacionamento em Joliet. O mesmo sucedeu quando os agentes examinaram o conteúdo da carteira do homem, a qual, por algum milagre, sobrevivera mais ou menos intacta. Pensavam ter deparado com uma profusão de pistas — carta de condução, número da Segurança Social, cartões de crédito — mas, após verificação no sistema informático, concluíram que esses documentos haviam sido forjados ou roubados. As impressões digitais teriam sido a etapa seguinte, mas, neste caso, não havia impressões digitais, visto que a bomba destruíra por completo as mãos do homem. Neste particular, o carro também não serviu de nada. O Dodge transformara-se numa massa de metal queimado e plástico derretido e, apesar de todos os esforços dos agentes, não foi possível encontrar uma única impressão digital. É possível que tenham mais sorte com os dentes — isto é, supondo que restam dentes suficientes para que a
polícia possa conduzir algum tipo de pesquisa — mas isso demorará forçosamente algum tempo, talvez mesmo vários meses. Acabarão se dúvida por chegar a alguma conclusão, mas uma coisa é certa: enquanto não conseguirem estabelecer a identidade daquele corpo despedaçado, o caso dificilmente terá pernas para andar.
Quanto a mim, quanto mais tempo demorarem, melhor. A história que me sinto obrigado a contar é particularmente complicada, e, se não chegar ao fim antes de eles apresentarem a sua solução para este mistério, as palavras que vou escrever não terão o menor significado. Mal o segredo seja desvendado, mentiras de todo o tipo começarão a circular e jornais e revistas publicarão versões distorcidas e injuriosas, e, em poucos dias, a reputação de um homem será destruída. Não que eu pretenda justificar o que esse homem fez, mas, visto que ele já não está aqui para se defender, o mínimo que posso fazer é explicar quem ele era e relatar a verdade dos factos que o conduziram àquela estrada no norte do Wisconsin. É por isso que tenho de trabalhar depressa: tenho de estar pronto para eles quando o momento chegar. Se, por algum acaso, nunca descobrirem nada, é muito simples — guardo o que escrevi e ninguém precisará de saber nada acerca desta história. Esse seria o melhor desfecho possível: um beco sem saída, nem uma só palavra pronunciada por nenhuma das partes. Mas não devo contar com isso. Se quero fazer aquilo que é forçoso que faça, terei de partir do princípio de que a polícia já está a apertar o cerco, de que, mais tarde ou mais cedo, descobrirá quem ele era. E não apenas depois de eu ter tido tempo suficiente para terminar isto — mas em qualquer momento, em qualquer momento a partir de agora. 
No dia a seguir à explosão, as agências noticiosas divulgaram um pequeno texto sobre o caso. Era uma daquelas histórias nebulosas — não mais que dois parágrafos — que os jornais costumam enterrar num qualquer recanto obscuro, mas quis o acaso que eu desse com ela no New York Times enquanto almoçava. De uma forma quase inevitável, comecei a pensar em Benjamin Sachs. Não havia nada na notícia que apontasse para ele de um modo preciso e, no entanto, ao mesmo tempo, tudo parecia encaixar. Não tinha qualquer contacto com ele havia cerca de um ano, mas, na nossa última conversa, Sachs dissera o suficiente para me convencer de que estava a viver uma situação muito grave, de que se precipitava, literalmente às cegas, para um desastre terrível, inominável. Se isto é demasiado vago, permitam-me que acrescente que ele também mencionou bombas, que falou sem cessar de bombas durante toda a sua visita, e que, nos onze meses seguintes, eu vivi precisamente com esse medo dentro de mim — o medo de que ele se matasse, o medo de que, um dia, ao abrir o jornal, deparasse com a notícia de que uma bomba acabara com a sua vida. Nessa altura, não passava de uma intuição desarrazoada, um daqueles saltos loucos no vazio, e, no entanto, a partir do momento em que tal pensamento se firmou na minha mente, nunca mais consegui libertar-me dele. Até que, dois dias depois de ter lido o artigo, dois agentes do FBI bateram-me à porta. Mal anunciaram quem eram, percebi que não me enganara. Fora Sachs quem morrera devido à explosão. Quanto a isso não havia a menor dúvida. Sachs estava morto e, agora, eu só podia ajudá-lo de uma maneira: mantendo secreta a sua morte. 

Asa, 2017
(Obras de Paul Auster)
trd. João Vieira de Lima

LEVIATHAN
(lido em 1995; 1998)