Contemporânea: Lust

LUST
ELFRIEDE JELINEK
(1989)
Véus de cortina estendem-se entre a mulher na sua morada e os outros, que também têm morada e particularidades. Os pobres, também esses têm domicílios, em que emolduram os seus rostos amigáveis, só o que é sempre igual é que os separa. Adormecem nesta situação: enquanto aludem às suas relações com o director, que, vivo, é o seu pai eterno. Este homem, que lhe deita a verdade como a sua respiração, governa de maneira tão indiscutível, está precisamente farto de mulheres, que anda por ali em altos brados, precisa só desta, a sua. Ele é inconsciente como as árvores em redor. É casado, e isso é um contrapeso para os seus prazeres. Os dois cônjuges já não coram em frente um do outro, riem e são, como sempre foram, tudo um para o outro.
O sol de Inverno é nesta altura pequeno e deprime toda uma geração de jovens europeus que aqui crescem ou que para aqui vêm fazer esqui. Para os filhos dos operários das fábricas de papel, o mundo poderia ser reconhecido às seis da manhã, quando eles vão ao estábulo e se transformam, para os animais, em cruéis estranhos. A mulher vai passear com o filho. Sozinha, ela vale já mais do que metade de todos os corpos, a outra metade trabalha na fábrica de papel sob as ordens do marido, assim que toca a sirene. E as pessoas agarram-se ao que se segue, que se estende sob os seus pés. A mulher tem uma cabeça grande e límpida. Vai passear com a criança durante uma hora, mas a criança, ébria de luz, prefere tornar-se insensível no desporto. Mal a perdemos de vista, já ela arremessa os seus ossinhos para dentro da neve, faz bolas e atira-as. O chão brilha de sangue como se fosse limpo de fresco. No caminho coberto de neve, penas de aves dispersas. Uma marta ou um gato fizeram o seu espectáculo natural rastejando a quatro patas, um animal foi comido. O cadáver foi desviado. A mulher da cidade foi trazida até aqui, ao sítio onde o homem dirige a fábrica de papel. O homem não está incluído no número de habitantes. Sozinho, conta. O sangue esguicha pelo caminho.
O homem. É uma sala suficientemente grande, em que ainda é possível falar. O filho também já tem de começar a aprender violino. O director não conhece individualmente os seus trabalhadores, mas conhece o seu mérito global, que Deus os abençoe a todos! Criou-se um coro da firma que é sustentado com donativos, para que o director se possa evidenciar. O coro viaja em autocarros pelos arredores, para que as pessoas possam dizer: «Ah sim, aquilo era único!» Por isso têm de fazer frequentemente uma digressão pelas cidadezinhas, têm de conduzir os seus passos não contados e os seus desejos incontidos pelas montras da província. O coro apresenta-se de frente, de costas voltadas para os cantos do restaurante. Também a ave, quando voa, só se vê de baixo. Com passos esforçados e circunspectos, os cantores saem do autocarro alugado que, ainda fumegante, expele cisco. Imediatamente, ali ao sol, os cantores experimentam as vozes. As nuvens de canto elevam-se sob a capa do céu, enquanto são apresentados prisioneiros. Entretanto as famílias arranjam-se sem o pai e apenas com parcos proventos. Comem salsichas e bebem cerveja e vinho. Prejudicam as vozes e os sentidos, porque utilizam ambas as coisas irreflectidamente. É pena que descendam de gente humilde. Uma orquestra de Graz poderia substituir cada um deles, mas também poderia apoiá-los caso estivesse disposta a isso. Estas vozes horrivelmente fracas, cobertas de ar e de tempo. O director quer que eles mendiguem o seu auxílio com as suas vozes. Também os pequenos podem, com ele, ter um bom princípio, se este reparar que têm dotes musicais. O coro é tratado como um hobby do director. Quando não viajam, os homens ficam de reserva. O director também põe do seu dinheiro, quando se trata das sangrentas e pestilentas eliminatórias do campeonato regional. Concede, a si e aos seus cantores, uma estabilidade que não é momentânea nem fugidia. Os homens, estas construções acima da terra, e eles querem ainda e sempre continuar a construir. Para que as mulheres os continuem a reconhecer nas suas obras quando chegam à reforma. Mas nos fins-de-semana, aí os celestiais cedem à tentação. Não sobem aos andaimes, mas ao pódio do restaurante e cantam compulsivamente, como se os mortos pudessem voltar e aplaudir. Os homens querem ser maiores, e o mesmo querem as suas obras e os seus méritos. As suas qualidades edificantes.
Estampa, 1992
(Essa Agora!)
trd. Maria Adélia Silva Melo

LUST
(lido em 2024)