Contemporânea: A Música do Acaso


A MÚSICA DO ACASO
PAUL AUSTER
(1990)

Durante um ano inteiro não fez outra coisa senão guiar, viajando erraticamente pela América enquanto esperava que o dinheiro acabasse. Não contara que fosse durar aquele tempo todo, mas uma coisa levava a outra e, na altura em que Nashe compreendeu o que lhe estava a acontecer, já não estava em condições de querer que acabasse. No terceiro dia do décimo terceiro mês, travou conhecimento com o miúdo que se auto-denominava Jackpot. Foi um daqueles encontros acidentais que parecem materializar-se a partir do nada — um galho que se quebra com o vento e vem cair subitamente aos nossos pés. Se tivesse acontecido em qualquer outro momento, provavelmente Nashe não teria aberto a boca. Mas como já tinha desistido, como imaginava que já não havia nada a perder, viu o estranho como uma prorrogação, como uma última oportunidade para fazer alguma coisa por si próprio antes que fosse demasiado tarde. E sem mais nem menos, foi em frente. Sem o mais leve tremor de medo, Nashe fechou os olhos e saltou. 
Tudo acabou por se tornar uma questão de sequência, a ordem dos acontecimentos. Se o advogado não tivesse levado seis meses a encontrá-lo, ele nunca teria estado na estrada no dia em que conheceu Jack Pozzi e por isso nenhuma das coisas que se seguiram àquele encontro teria alguma vez acontecido. Nashe achava inquietante pensar na sua vida nesses termos, mas a verdade é que o seu pai tinha morrido um mês antes de Thérèse o ter deixado e, se tivesse suspeitado de que estava prestes a herdar aquele dinheiro, provavelmente podia tê-la convencido a ficar. Mesmo que ela não tivesse ficado, não teria havido necessidade de mandar Juliette para o Minnesota para ir viver com a sua irmã, e só isso o teria impedido de fazer o que fez. Mas nessa altura ele ainda tinha o emprego nos bombeiros, e como é que poderia tomar conta de uma criança de dois anos quando o seu trabalho o obrigava a estar fora de casa a todas as horas do dia e da noite? Se tivesse algum dinheiro, teria contratado uma mulher para viver com eles e tomar conta de Juliette, mas se tivesse havido dinheiro, não teriam arrendado a metade de baixo de uma triste casa de duas famílias em Somerville e talvez Thérèse não o tivesse deixado. Não que o seu ordenado fosse assim tão mau, mas o acidente vascular cerebral da mãe, quantro anos antes, levara-o à falência e ele continuava a mandar pagamentos mensais para a casa de repouso da Florida onde ela morrera. Devido a tudo isto, a casa da irmã tinha surgido como a única solução. Pelo menos, Juliette teria oportunidade de viver com uma verdadeira família, de estar rodeada de outras crianças e de respirar ar puro, o que era muito melhor do que tudo o que ele lhe poderia oferecer. Então, inesperadamente, o advogado descobriu-o e o dinheiro caiu-lhe no colo. Era uma soma colossal — perto de duzentos mil dólares, uma quantia quase inimaginável para Nashe —, mas nessa altura já era demasiado tarde. Demasiadas coisas tinham sido desencadeadas durante os últimos cinco meses e nem sequer o dinheiro poderia já detê-las.

Presença, 1992
(Grandes Narrativas)
trd. Ana Patrão
(lido em 1999)