Contemporânea: O Corpo Enquanto Arte


O CORPO ENQUANTO ARTE
DON DELILLO
(2001)

O tempo parece escoar-se. O mundo acontece, prolonga-se numa sucessão de momentos e nós detemo-nos a olhar uma aranha espalmada contra a sua teia. Há na luz um fulgor que leva a que os objectos nos pareçam recortados com precisão, enquanto faixas brilhantes percorrem a baía. Sabemos melhor quem somos num dia de intensa claridade, depois de um temporal, quando o sentimento de si trespassa todas as folhas que caem, mesmo as mais pequenas. O vento rumoreja entre os pinheiros e o mundo adquire uma existência irreversível e a aranha agarra-se à teia que o vento faz baloiçar.

Aconteceu que, naquela manhã derradeira, ambos se encontraram ao mesmo tempo ali, na cozinha, e cruzaram-se em passo arrastado para ir buscar coisas aos armários e às gavetas e depois esperaram que o outro saísse da frente do lava-loiças e do frigorífico, com os últimos resquícios dos sonhos ainda a toldar-lhes o espírito, e ela abriu a torneira e deixou escorrer água sobre o punhado de mirtilos que segurava na concha da mão e
fechou os olhos para inalar o aroma que se elevava das bagas.
 Sentado, a ler o jornal, ele mexia o café. O café e a chávena eram dele. Ambos partilhavam o jornal, mas sabiam, mesmo que nenhum o dissesse, que era pertença dela. 
— Queria dizer-te qualquer coisa, mas o quê? 
A água escorria da torneira e ela julgou reparar em algo. Era a primeira vez que se dava conta daquilo. 
— Sobre a casa. Já sei — declarou ele. É uma coisa que ando para te dizer. 
Ela reparou como a água da torneira ficava opaca ao fim de escassos segundos. A água escorria, prateada e límpida, e, poucos segundos depois, ficava opaca e era bem curioso que ao cabo de tantos meses e de tantas ocasiões em que se servira da torneira da cozinha ela nunca tivesse reparado como a água escorria límpida a princípio e depois ficava não exactamente turva mas sim opaca, ou talvez aquilo nunca antes tivesse acontecido, ou então ela reparara e tornara a esquecer-se.
 Acercou-se do armário com os mirtilos molhados na mão e, erguendo o braço, pegou no pacote de cereais e pousou-o na bancada, o pacote em tons de castanho e branco, e foi então que aquela peça da torradeira saltou e ela tornou a empurrá-la par baixo porque era preciso carregar duas vezes para que o pão ficasse escuro e, sem perder o ar ausente, ele fez um aceno aprovador com a cabeça, porque a torrada era dele e a manteiga também e depois ligou o rádio e apanhou o boletim meteorológico. 

Relógio d'Àgua, 2001
(Ficções)
trd. Paulo Faria
(lido em 2002; 2007)