Contemporânea: A Pianista

A PIANISTA
ELFRIEDE JELINEK
(1983)
A professora de piano Erika Kohut entra como um furacão na casa que partilha com sua mãe. A mãe gosta de chamar a Erika o seu pequeno tufão, pois a menina consegue às vezes ser tão rápida como um furão. Fugir à mãe é a motivação. Erika vai a caminho do fim dos trinta. No que respeita à idade, a mãe bem poderia ser sua avó. Foi só ao cabo de muitos e duros anos de matrimónio que, outrora, Erika se apresentou neste mundo. O pai logo à filha passou o testemunho e saiu de cena. Erika entrou em cena, o pai saiu. A necessidade tomou Erika na mulher rápida que é hoje. Qual enxame de folhas outonais, entra de rompante pela casa dentro e esforça-se por atingir o quarto sem ser vista. Mas já se lhe interpõe a mamã, enorme, imobilizando Erika. Com interrogatório, encostando-a à parede, inquisidor e pelotão de fuzilamento numa só pessoa, reconhecida no Estado e na familia como mãe, por unanimidade. A mãe investiga por que razão Erika só agora chegou a casa, tão tarde? O último aluno há já três horas que se foi embora, cumulado pelo escárnio de Erika. Deves pensar que não venho a saber onde estiveste, Erika. Uma criança não espera que a mãe a convide a prestar contas, em que aliás ninguém acredita, porque criança gosta de mentir. A mãe ainda fica à espera, mas só o tempo de contar até três.
Ainda vai em dois, e já a filha começou a dar-lhe uma versão que diverge substancialmente da verdade. A pasta atulhada de pautas é-lhe arrebatada das mãos e logo a resposta amarga a todas as perguntas salta aos olhos da mãe. Quatro volumes de sonatas de Beethoven partilham indignados aquele espaço exíguo com um vestido novo, que se reconhece ser de compra recente. A mãe logo vocifera contra a veste. Trespassado pelo cabide, aquele vestido ainda há pouco na loja parecera tão sedutor, tão garrido e aveludado, agora, trespassado pelos olhares da mãe, está ali como um trapo murcho. O dinheiro do vestido era destinado à caderneta de poupança! E encontra-se agora precocemente gasto. Antes, era possível tê-lo ali diante dos olhos a qualquer momento, sob a forma de depósito na caderneta de poupança-habitação das Caixas de Poupança austríacas, se se tivesse a coragem de cobrir a distância até ao gavetão da roupa, onde a caderneta espreita por trás de uma rima de lençóis de linho. Mas esta hoje foi dar uma volta, um mecanismo de levantamento foi accionado, e o resultado está à vista: agora, Erika teria de pôr o vestido todas as vezes que se quisesse saber onde o querido dinheiro fora parar. A mãe grita: E deste assim cabo da recompensa que podias vir a ter no futuro! Podíamos vir a ter no futuro uma casa nova, mas como não pudeste esperar, o que tens agora é só um trapo, que pouco falta vai estar fora de moda. A mãe quer tudo no futuro. Não há nada que queira já. Só a menina ela quer sempre, e quer sempre saber onde se pode contactar a menina, em caso de emergência, se a mamã for ameaçada de enfarte cardíaco. A mãe quer poupar no tempo, para poder gozar no futuro. E vai logo Erika comprar um vestido! por pouco ainda mais efémero do que um traço de maionese numa sandes de peixe. Não é para o ano que esse vestido vai ficar fora de qualquer moda, mas é já a partir do mês que vem, o dinheiro, esse nunca passa de moda.
Asa, 2004
(Asa Literatura)
trd. Aires Graça
(lido em 2018)