Contemporânea: Submundo


SUBMUNDO
DON DELILLO
(1997)

É tua a voz que lhe brota dos lábios, americano, e há nos seus olhos um brilho com laivos de esperança. 
Hoje é dia de escola, sem dúvida, mas ele está bem longe da sala de aula. Prefere estar aqui, parado à sombra desta velha construção semelhante a um enorme casco ferrugento, e não é fácil censurá-lo — esta metrópole de aço e betão e tinta carcomida e relva aparada e enormes maços de Chesterfield, de viés sobre os painéis gigantes, com um par de cigarros a assomar de cada um. 
A história faz-se de anseios em grande escala. Trata-se de um mero garoto com um desejo bem restrito, mas faz parte de uma multidão que não cessa de engrossar, milhares de indivíduos anónimos que emergem dos autocarros e dos comboios, pessoas em colunas estreitas que calcorreiam a ponte giratória sobre o rio e, embora não formem uma migração nem uma revolução, um vasto abalo da alma colectiva, trazem consigo o calor do corpo de uma grande cidade e os seus próprios devaneios e desesperos insignificantes, essa coisa invisível que assombra o dia — homens de chapéu de feltro e marujos de licença, o tropel caótico dos seus pensamentos, a caminho de uma partida de basebol. 
O céu baixo tem uma cor cinzenta, o cinzento turvo da espuma a deslizar na rebentação. 
Ele queda-se na berma do passeio, juntamente com os outros. É o mais novo, um garoto de catorze anos, e percebe-se que não tem um tostão no bolso pela expressão acerada e de viés que traz suspensa do corpo. É a primeira vez que se mete nestas andanças e não conhece nenhum dos outros e apenas dois ou três parecem conhecer-se, mas não podem fazer isto sozinhos nem aos pares, por isso encontraram-se graças aos olhares escorregadios que detectam os companheiros de temeridade, e ali estão agora, rapazes negros e brancos que emergiram das bocas do metropolitano ou das ruas vizinhas do Harlem, sombras esguias, bandidos, quinze
ao todo, e, de acordo com a lenda que circula de boca em boca, talvez quatro consigam passar por cada um que for apanhado.
Esperam nervosamente que os que compraram a sua entrada transponham os torniquetes, a derradeira amálgama dispersa de adeptos, os retardatários e os indolentes. Observam os táxis que chegam da baixa já em cima da hora e os homens de cabelo cheio de brilhantina avançando, todos janotas, em direcção aos guichets, corretores de lotaria clandestina e peraltas de clubes nocturnos e figurões da Broadway, com aura de vedetas, a sacudir fiozinhos de cotão das mangas de angorá. Parados na berma, remiram como quem não olha, ostentando a expressão um tanto azeda dos ociosos às esquinas. O rebuliço esmoreceu por completo, a tagarelice e o vaivém que antecede o jogo, vendedores ambulantes a percorrer os passeios apinhados, agitando cartões para anotar a marcha do marcador e galhardetes e soltando o seu pregão em cantarolares vetustos, homens escanzelados a vender crachás e bonés, todos agora desaparecidos, de regresso aos seus quartos acanhados nas ruas exangues. 
Estão junto ao lancil do passeio, à espera. Os olhos turvam-se-lhes, emitem menos luz. Alguém tira as mãos dos bolsos. Estão à espera e, de súbito, desatam a correr, um deles desata a correr, um irlandês que berra Geronimo

Sextante, 2010
(Ficção)
trd. Paulo Faria
(lido em 2010)