Da Literatura: Outras Inquirições

OUTRAS INQUIRIÇÕES
JORGE LUIS BORGES
(1952)
A muralha e os livros
Li há dias que o homem que ordenou a edificação da quase infinita Muralha da China foi aquele primeiro imperador, Shih Huang Ti, que igualmente mandou queimar todos os livros anteriores a ele. Que as duas vastas operações — as quinhentas ou seiscentas léguas de pedra opostas aos Bárbaros, e a rigorosa abolição da história, ou seja, do passado — tenham provindo de uma pessoa e sido de certo modo os seus atributos, inexplicavelmente satisfez-me e, ao mesmo tempo, inquietou-me. Investigar as razões desta emoção é o objetivo desta nota.
Historicamente, não há nenhum mistério nas duas medidas. Contemporâneo das guerras de Aníbal, Shih Huang Ti, rei de Tsin, submeteu ao seu poder os Seis Reinos e acabou com o sistema feudal; erigiu a muralha, porque as muralhas eram defesas; queimou os livros, porque a oposição os invocava para gabar os antigos imperadores. Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum nos príncipes; a única coisa singular em Shih Huang Ti foi a escala em que atuou. Assim o dão a entender alguns sinólogos, mas eu sinto que os factos que referi são algo mais que um exagero ou uma hipérbole de disposições triviais. Murar uma horta ou um jardim é comum; já não o é murar um império. Também não é coisa de somenos pretender que a mais tradicional das raças renuncie à memória do seu passado, mítico ou verdadeiro. Três mil anos de cronologia tinham os chineses (e, nesses anos, o Imperador Amarelo e Chuang-Tsé e Confúcio e Lao-Tsé), quando Shih Huang Ti ordenou que a história começasse com ele.
Quetzal, 2020
(Obras de Jorge Luis Borges)
trd. José Colaço Barreiros
(lido em 2023)