Da Literatura: Por Cima do Vulcão


POR CIMA DO VULCÃO
MALCOLM LOWRY
(1946)

24, Calle de Humboldt Cuernavaca, Morelos México (2 de Janeiro de 1946)
Caro Sr. Cape 
Estou, na verdade, muito agradecido pelas suas palavras de 29 de Dezembro, mas não as recebi antes da véspera do Ano Novo; e aliás recebi-as aqui, em Cuernavaca, onde o maior dos acasos me leva a morar precisamente na torre que foi o modelo da casa de Laruelle — e na altura, já lá vão dez anos, só por fora conheci — mas é também o lugar onde o Cônsul teve um pequeno problema, no Vulcão, com certa correspondência atrasada. 
Passando por cima da minha sensação que é, como poderá facilmente imaginar, de esmaecido triunfo, quero desde já ocupar-me, antes de ficar imobilizado por uma agrafia total, do assunto em apreço. 
Começo por sentir que o leitor, de quem me envia a cópia de um relatório, poderá (a julgar pela primeira carta que o senhor me escreveu) não ter sido tão compreensivo como aquele a quem primeiro deu o livro a ler. 
Por outro lado, concorde eu embora sem reservas com muito do que afirma este segundo e inteligentíssimo leitor, e seja embora verdade que eu próprio, no lugar dele, faria reparos na maioria idênticos, coloca-me em situação algo difícil quanto a uma resposta definitiva às questões que o senhor me levanta sobre revisões do texto, isto por motivos que tentarei expor e os dois, o senhor e ele, tenho a certeza que acharão válidos pelo menos sob o ponto de vista do autor. 
É verdade que o romance faz um arranque lento mas, esteja ele embora com razão ao considerá-lo um erro (e seja certo que geralmente é erro em qualquer romance), por várias e humanas razões acho possível que a sua gravidade tenha tido maior peso nele do que terá no leitor vulgar se começarem por ser tomadas algumas precauções. De qualquer forma, se o livro já estivesse impresso e as suas páginas não revelassem a tão especial, desesperada e muda súplica do manuscrito não publicado, acho que ao princípio o interesse do leitor tenderia a ser muitíssimo mais conquistado, como se o livro já fosse, digamos, um confirmado clássico, e que muito diferentes seriam os seus sentimentos; pudesse embora dizer: Meu Deus, como isto é duro de roer, entraria no jogo esforçadamente, através do escuro pântano — na verdade, ficaria envergonhado se o não fizesse—, por já lhe terem chegado aos ouvidos rumores sobre futuras e recompensadoras perspectivas.
 Empregando a palavra leitor no sentido mais amplo, estou a sugerir que o Vulcão pode ao princípio parecer ou não aborrecido, e dependendo isto, de certo modo, do estado de espírito do leitor e de como está preparado para captar a forma do livro e a verdadeira intenção do autor. Porque embora preparado e apetrechado para ambas as coisas, logo ao princípio não pode conhecer a natureza de cada uma delas; sugiro, pois, uma pequena explicação subtil mas sólida, em prefácio ou badana, que possa contrariar muito amplamente ou modificar a reacção que teme e — mesmo que tenha sido esta a sua primeira reacção, e pudesse muito bem ser a minha, no seu lugar — de momento pedir-lhe-ei generosidade bastante para considerar tal ponto fora de questão —; se, digo eu, condicionarmos o leitor ainda que ao de leve, levando-o a aceitar como inevitável o começo lento, e supondo que eu saiba convencê-lo a si do mesmo — apesar de tudo lento, mas não necessariamente abor-recido — o resultado poderá surpreender...

Hiena, 1995
(Memórias do Abismo)
trd. Pedro José Leal
(lido em 2024)