Da Literatura: Porquê Ler os Clássicos?


PORQUÊ LER OS CLÁSSICOS?
ITALO CALVINO
(p. 1991)

Comecemos com umas propostas de definição.
 
1. Os clássicos são os livros de que se costuma ouvir dizer: «Estou a reler...» e nunca «Estou a ler...»

É isto que se verifica pelo menos entre as pessoas que se pressupõe serem de «vastas leituras»; não se aplica à juventude, idade em que o encontro com o mundo, e com os clássicos como parte do mundo, é válido precisamente como primeiro encontro com o mundo. 
O prefixo iterativo antes do verbo «ler» pode ser uma pequena hipocrisia por parte de quem tiver vergonha de admitir que não leu um livro famoso. Para o descansar bastará observar que por mais vastas que possam ser as leituras «de formação» de um indivíduo, fica sempre um número enorme de obras fundamentais que não se leu. 
Quem leu todo o Heródoto e todo o Tucídides levante o dedo. E Saint-Simon? E o cardeal de Retz? Mas até os grandes ciclos de romances do século XIX são mais nomeados que lidos. Balzac, em França começa a ler-se na escola e pelo número de edições em circulação dir-se-ia que também se continua a lê-lo depois. Mas em Itália se se fizesse uma sondagem Marktest receio que Balzac ficaria nos últimos lugares. Os apaixonados de Dickens em Itália são uma restrita elite de gente que quando se encontra se põe logo a recordar personagens e episódios como se fossem pessoas suas conhecidas. Há anos Michel Butor, ao leccionar na América, farto de ouvir perguntarem-lhe por Émile Zola que nunca tinha lido, decidiu-se a ler todo o ciclo dos Rougon-Macquart. Descobriu que era completamente diferente do que julgava: uma fabulosa genealogia mitológica e cosmogónica, que descreveu num belíssimo ensaio. 
Isto vem a propósito de dizer que ler pela primeira vez um grande livro em idade madura é um prazer extraordinário: diferente (mas não se pode dizer que é maior ou menor) do que se tem ao lê-lo na juventude. A juventude comunica à leitura, tal como a qualquer outra experiência, um sabor e uma importância muito especiais; enquanto na maturidade se apreciam (deveriam apreciar-se) muitos mais pormenores, níveis e significados. Assim, podemos tentar outra fórmula de definição:
 
2. Chamam-se clássicos os livros que constituem uma riqueza para quem os leu e amou; mas constituem uma riqueza nada menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas condições melhores para os saborear.
 
De facto as leituras da juventude podem ser pouco profícuas por impaciência, distracção, e inexperiência das instruções para o uso e inexperiência da vida. Podem ser (se calhar ao mesmo tempo) formativas no sentido de darem uma forma às experiências futuras, fornecendo modelos, conteúdos, termos de comparação, esquemas de classificação, escalas de valores, paradigmas de beleza: tudo coisas que continuam a agir mesmo que do livro lido na juventude se recorde pouquíssimo ou mesmo nada. Ao reler o livro em idade madura, acontece reencontrar-se estas constantes que agora já fazem parte dos nossos mecanismos internos e de que tínhamos esquecido a origem. Há uma força especial da obra que consegue fazer-se esquecer enquanto tal, mas que deixa sementes. Então a definição que dela poderemos dar será: 

3. Os clássicos são livros que exercem uma influência especial, tanto quando se impõem como inesquecíveis, como quando se ocultam nas pregas da memória mimetizando-se de inconsciente colectivo ou individual.

Por isso deveria haver uma época na vida adulta destinada a revisitar as leituras mais importantes da juventude. Se os livros permaneceram os
mesmos (mas eles também mudam, sob a luz de uma perspectiva histórica que se alterou) nós certamente mudámos, e o encontro é um acontecimento totalmente novo. Assim, o facto de se usar o verbo «ler» ou «reler» não tem muita im-portância. Com efeito poderíamos dizer:
 
4. De um clássico toda a releitura é uma leitura de descoberta igual à primeira.

5. De um clássico toda a primeira leitura é na realidade uma releitura. 

A definição 4 pode considerar-se um corolário desta: 

6. Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer.
 
Enquanto a definição 5 remete para uma formulação mais explicativa, como:

7. Os clássicos são os livros que nos chegam trazendo em si a marca das leituras que antecederam a nossa e atrás de si a marca que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes).

Teorema, 1994
trd. José Colaço Barreiros
(lido em 2003)