Da Literatura: Tratado do Estilo


TRATADO DO ESTILO
LOUIS ARAGON
(1928)

Destino de La Fontaine.
Em francês, fazer significa cagar. Exemplo: 
Não forcemos o nosso talento: 
Nada fazeríamos com garbo.

O bilhete postal representava um menino no penico. Assunto para facécias incontáveis, e no entanto metade da população definha por causa de tantos conceitos engenhosos serem postos de lado, após ter passado de moda a peniqueira. Mas os apuramentos do bidé alegram já o coração das gerações mais novas. Deste modo avançamos vida fora por entre duas sebes de boas histórias de merda, das bem untadas. Ouçam-nos vocês palrar, os caminhos de ferro, as mesas de hotel. E já nem falo dos superiores hierárquicos, da caserna ao mecenato, na maior parte das instituições as pessoas servem-se dos jornais à laia de papel higiénico. Dessa maneira o prazer é a dobrar, reavendo-se na leitura a preciosa matéria excrementícia, tão excelente para o espírito como para o sentimento. 
Matéria esta eminentemente francesa, e quem iria deixar que se perdesse? Tudo quanto é nacional é nosso. Por isso se gaba este povo de limpa-latrinas de ter a mais importante pintura do mundo, o mais importante sebo de rodízios, a mais importante culinária, as mais importantes putas, a mais importante cortesia (Por quem é. Nada disso farei, etc.). Tendo pisado com o pé esquerdo, ao andar, uma pouca de sal gaulês, possui uma história sem sombras, das mais jocosas, onde em vão alguém vai farejar o vestígio de um erro, a lembrança sequer duma cobardia. Elegância e galanteio de modo algum excluem a piada. Por conseguinte a gente ri, e logo a partir da infância o cidadãozinho parte a moca sempre que a palavra caca patrioticamente lhe soa aos ouvidos. 
Ante a notícia duma revolução, Kant interrompe o passeio, Goethe não o interrompe. Em ambos os casos, que jactância. 
Um cavalheiro que pretende estar à altura dos acontecimentos: cá temos nós a definição do palhaço. De 1914 a 1918 verificou-se ser falsa essa lenda segundo a qual os palhaços vêm de Inglaterra ou da Alemanha: de cada rego bendito do solo francês ergueram-se então palhaços a dar com um pau. 
Paris ergueu uma estátua à memória de Shakespeare, no Bulevar Haussmann, no dia em que o conselho municipal o responsabilizou a ele como pai da ideia de palhaço. Pai da pátria, ora toma. 
Nomes de palhaços que me vêm à ideia: Julien Benda, o Senhor Thiers, Goethe, Paul Fort, o Abade Brémond, o autor de Nada Mais que a Terra, Raymond Poincaré, Gyp, o Pastor Soulié, André Maurois, Ronsard, e muito especialmente Julien Benda. 
O barão Seillière é mais palafreneiro que outra coisa. 

Antígona, 1995
trd. Júlio Henriques
(lido em 2004)