Distopia e Apocalipse: As Raízes do Céu


AS RAÍZES DO CÉU
ROMAIN GARY
(1956)

Desde a alvorada, o caminho seguia a colina através de um matagal de bambus e de erva onde o cavalo e o cavaleiro desapareciam às vezes completamente; depois a cabeça do jesuíta reaparecia debaixo do capacete branco, com um grande nariz ossudo por cima dos lábios viris e irónicos, e olhos penetrantes que evocavam muito mais horizontes ilimitados do que as páginas de um breviário. A sua grande estatura adaptava-se mal ao pónei Kirdi que lhe servia de montadura; as pernas faziam um ângulo gudo com a sotaina, em estribos demasiado curtos para ele, e às vezes baloiçava perigosamente na sela, olhando com movimentos bruscos do seu perfil de conquistador a paisagem dos montes Oulé, a que não era difícil reconhecer um certo ar de felicidade. Há três dias que deixara o terreno onde dirigia escavações por conta dos Institutos de Paleontologia belga e francês e, depois de um trajecto em jeep, há quarenta e oito horas que seguia a cavalo o guia através da selva, para o lugar onde se devia encontrar Saint-Denis. Desde manhã que não avistava o guia, mas a pista não tinha encruzilhadas e, às vezes, ouvia à sua frente um rumor de erva e o barulho dos cascos. De vez em quando, amodorrava, o que o punha de mau humor; não gostava de se lembrar dos seus setenta anos, mas o cansaço de sete horas de sela obrigava-o frequentemente a acabar os seus pensamentos numa sonolência vaga e suave que era reprovada pela sua consciência de religioso e pelo seu espírito de sábio. As vezes detinha-se e esperava que o boy viesse ter com ele, com o cavalo que levava numa caixa alguns fragmentos interessantes, resultado das últimas pesquisas, assim como manuscritos que nunca o abandonavam. A altitude não era muita: as colinas tinham encostas suaves; às vezes, os flancos punham-se a mexer, a viver: os elefantes. O céu estava, como sempre, intransponível, vaporoso e luminoso, obstruído por todos os suores da terra africana. Os próprios pássaros pareciam ter-lhe esquecido o caminho. A vereda continuou a subir e, numa volta, o jesuíta viu a planície do Ogo para lá das colinas, com aquele mato crespo e fechado de que não gostava e que estava, assim pensava, para a grande floresta equatorial, como a vulgaridade dos pêlos está para a nobreza da cabeleira. Calculara chegar ao meio-dia mas só às duas horas é que desembocou no cimo da colina e viu a tenda do administrador e o boy ocupado a limpar marmitas, acocorado diante dos restos de uma fogueira. O jesuíta meteu a cabeça no ínteríor da tenda e viu Saint-Denis adormecido no leito de campanha. Não o incomodou, mandou armar a sua tenda, lavou-se, bebeu chá e dormiu um pouco. Depois acordou e sentiu imediatamente a fadiga em todo o corpo. Ficou um momento estendido de costas. Pensava que estava um pouco triste por ser muito velho e que portanto já não lhe restava muito tempo, pelo que teria de se contentar, sem dúvida, com o que já sabia. Quando saiu da tenda, encontrou Saint-Denis a fumar cachimbo, voltado para as colinas que o sol ainda não deixara, mas que pareciam já tocadas como que por um pressentimento. Ele era mais baixo que alto, calvo, com o rosto prisioneiro de uma barba desordenada, usava óculos de aros de aço que escondiam uns olhos que ocupavam todo o espaço do rosto emaciado com maçãs salientes; as costas arqueadas e estreitas mais lembravam um emprego sedentário do que o último guarda dos grandes rebanhos africanos. Falaram um instante dos amigos comuns, dos rumores de guerra e de paz, depois Saint-Denís interrogou o Padre Tassin sobre os seus trabalhos, perguntando-lhe especialmente se era exacto que, depois das últimas descobertas na Rodésia, se podia afirmar que a África era o verdadeiro berço da humanidade. Finalmente, o jesuíta fez a sua pergunta. Saint-Denís não pareceu admirar-se por um membro eminente da Ilustríssima Companhia, com setenta anos e com a reputação entre os Irmãos das missões de se interessar muito mais pelas origens científicas do homem do que pela sua alma, não hesitar em andar dois dias a cavalo para o interrogar acerca de uma rapariga cuja beleza e juventude não deviam pesar muito no espírito de um sábio habituado a contar por milhões de anos e por idades geológicas. Respondeu portanto com franqueza e continuou a falar com um abandono que ia aumentando, e um estranho sentinento de alívio, a tal ponto que lhe aconteceu mais tarde perguntar-se se o Padre Tassin não teria vindo até ele com o único fim de o ajudar a livrar-se daquele peso de solidão e de recordações que o oprimia. Mas o jesuíta escutava em silêncio, com uma delicadeza quase distante, nunca oferecendo uma daquelas consolações pelas quais a sua religião é tão justamente célebre. A noite surpreendeu-os assim, mas Saint-Denis continuou a falar, apenas se detendo uma vez para ordenar ao seu boô N'Gola que acendesse uma fogueira que fez afugentar o que restava do céu, de tal modo que se viram obrigados a afastar-se um pouco para reencontrarem a companhia das colinas e das estrelas. 

Círculo de Leitores, 1973
trd. João B. Viegas
(lido em 2018)