Distopia e Apocalipse: Fahrenheit 451


FAHRENHEIT 451
RAY BRADBURY
(1953)

Era um prazer pôr fogo às coisas. 
Era um prazer especial vê-las a serem devoradas, enegrecidas e transformadas. Com o bocal de latão da mangueira bem firme nos punhos, com aquela enorme pitão que cuspia veneno cheio de querosene sobre o mundo, sentia que o sangue lhe latejava na cabeça, e que as suas eram as mãos de um genial maestro de orquestra a dirigir todas as sinfonias de chamas e de fogo que consumissem os últimos farrapos e as ruínas carbonizadas da História. Com a impassível cabeça adornada pelo capacete simbolicamente numerado 451, e os olhos tingidos de um laranja ígneo pela antecipação do que se seguiria, acionou o ignitor e a casa elevou-se no ar, envolta numa bola de fogo que manchou o céu da noite com tons de vermelho, amarelo e negro. Caminhou envolto num enxame de vagalumes. Como naquela velha piada, apetecia-lhe espetar uma maçã caramelizada num pau e assá-la um pouco naquela fornalha, enquanto 
os livros esvoaçavam como pombos e iam morrer no alpendre e no relvado da casa. Enquanto os livros se consumiam num turbilhão ascendente e faiscante e eram empurrados por um vento tornado negro pelo incêndio. 
Montag exibiu o sorriso cruel de todos os homens habituados às carícias das chamas. 
Sabia que, quando voltasse ao quartel, iria sorrir de novo ao olhar-se no espelho, ao ver aquele rosto enegrecido como o dos antigos cantores de variedades que usavam cortiça queimada para escurecerem a face. Mais tarde, ao adormecer no escuro, sentiria que o sorriso cruel ainda lhe controlava os músculos do rosto. Nunca se extinguia, aquele sorriso, e desde que se lembrava sempre assim fora.
 
Tirou o capacete negro e luzidio como a carapaça de um escaravelho e pôs-se a poli-lo. Pendurou cuidadosamente o casaco à prova de fogo. Entregou-se ao prazer de um generoso duche, e depois, a assobiar, com as mãos nos bolsos, caminhou ao longo do andar superior do quartel e deixou-se cair pelo buraco. No último momento, quando o desastre parecia iminente, tirou as mãos dos bolsos e travou a queda agarrando-se ao varão metálico dóurado. Deslizou por este abaixo, numa chiadeira que parou quando os seus tacões chegaram a um par de centímetros acima do chão de cimento. 
Saiu do quartel para a rua sob o céu noturno em direção ao metro, cujas carruagens, movidas a ar comprimido, deslizavam silenciosamente através do túnel escavado na terra e, emitindo um bafo de ar quente, o deixavam no patamar de azulejos de cor creme da escada rolante que ascendia até ao subúrbio. 
A assobiar, deixou que a escada o levasse suavemente de volta ao ar da noite. Caminhou em direção à esquina, com a cabeça vazia de quaisquer pensamentos. Antes de lá chegar, porém, abrandou o passo, como se um vento se tivesse levantado de repente, como se alguém tivesse chamado o seu nome. 
Nas noites anteriores tivera uma sensação estranha naquela parte do passeio que fazia a esquina, mesmo antes da reta que o levaria a casa à luz das estrelas. Sentira, no momento imediatamente anterior a dobrar a esquina, que estava ali alguém. O ar parecia carregado de uma calma especial, como se alguém tivesse estado ali à espera, serenamente, e, um segundo antes de ele aparecer, se tivesse transformado numa sombra para o deixar passar. Talvez o seu olfato detetasse um ligeiro perfume, talvez a pele das costas das suas mãos ou do seu rosto sentissem a subida da temperatura naquele preciso ponto em que a presença de uma pessoa pudesse tê-la aumentado alguns graus durante um momento. Era algo incompreensível. De cada vez que dobrava a esquina, via apenas a superfície branca do passeio, ainda que, certa noite, lhe pareceu ver algo a escapulir-se rapidamente através de um relvado, antes que pudesse focar a visão ou dizer alguma coisa. 
Mas nessa noite decidiu abrandar o passo até quase parar. A sua mente, que se-lhe antecipara a dobrar a esquina, ouvira um mínimo sussurro. Alguém a respirar? Ou era apenas a compressão da atmosfera pela simples presença de alguém ali, muito quieto, à espera? 
Dobrou a esquina. 

Saída de Emergência, 2020
(Best Seller)
trd. Casimiro da Piedade

FAHRENHEIT 451
(trd. Mário-Henrique Leiria)
(lido em 2003)