Doçuras: Bouvard e Pécuchet


BOUVARD E PÉCUCHET
GUSTAVE FLAUBERT
(p. 1891)

Com um calor de trinta e três graus, o bulevar Bourdon estava absolutamente deserto. 
Mais abaixo, o canal Saint-Martin, fechado pelas duas comportas, estendia em linha recta a sua água cor de tinta. No meio estava um barco carregado de madeiras, e na margem duas filas de barricas. 
Além do canal, entre as casas separadas por estaleiros, o grande céu puro recortava-se em chapas de azul-ultramarino e, sob a reverberação do sol, as fachadas brancas, os telhados de ardósia, os cais de granito cegavam de brilho. Um rumor confuso subia de longe na atmosfera morna; e tudo parecia entorpecido pela ociosidade do domingo e pela tristeza dos dias de Verão. 
Dois homens apareceram. 
Um vinha da Bastilha, outro do Jardim Botânico. O mais alto, vestido de algodão, caminhava de chapéu caído para trás, colete desabotoado e gravata na mão. O mais baixo, cujo corpo lhe desaparecia numa sobrecasaca castanha, vinha de cabeça baixa sob um boné de pala aguçada. 
Quando chegaram a meio do bulevar, sentaram-se ao mesmo tempo no mesmo banco. 
Para limpar a testa, tiraram os chapéus, que poisaram junto de si; e o baixinho viu escrito no chapéu do vizinho «Bouvard», enquanto este distinguia facilmente no boné do sujeito de sobrecasaca a palavra «Pécuchet». 
— Olha! — disse ele. — Tivemos a mesma ideia, de mandar gravar os nossos nomes nos chapéus. 
— Foi mesmo! É que podiam levar o meu no escritório! 
— Tal como a mim, sou empregado. 
Então encararam-se. 
O aspecto amável de Bouvard encantou logo Pécuchet. 
Os seus olhos azulados, sempre semicerrados, sorriam-lhe no rosto corado. Umas calças com uma grande pala de protecção à frente, que enrolavam em baixo sobre sapatos de pele de castor, moldavam-lhe o ventre, fazendo inchar a camisa na cintura; e os cabelos loiros, naturalmente ondulados em breves caracóis, davam-lhe algo de infantil. 
Soprava pela ponta dos lábios uma espécie de constante assobio. 
O ar grave de Pécuchet impressionou Bouvard. 
Dir-se-ia que usava peruca, com aquelas madeixas negras que lhe ornamentavam o crânio alto. O rosto parecia estar sempre de perfil, por causa do nariz que lhe vinha até muito abaixo. As pernas, enfiadas em canudos de lasting, eram desproporcionadas relativamente ao comprimento do tronco; e tinha uma voz forte, cavernosa. 
Escapou-lhe esta exclamação: — Que bem que se estaria no campo! 

E-Primatur, 2023
trd. Pedro Tamen
(lido em 2023)


BOUVARD E PÉCUCHET
(l. 2004)