Doçuras: Levantai Alto o Pau de Fileira, Carpinteiros


LEVANTAI ALTO O PAU DE FILEIRA,
CARPINTEIROS
e
SEYMOUR, UMA INTRODUÇÃO
J.D. SALINGER
(1963)

Há uns vinte anos, uma noite em que a nossa enorme família estava sitiada pela papeira, a minha irmã mais nova, Franny, foi transferida, com berço e tudo, para o quarto ostensivamente livre de germes que eu partilhava com o meu irmão mais velho, Seymour. Eu tinha quinze anos, Seymour dezassete. Por volta das duas horas da manhã, fuí acordado pelo choro da nova companheira de quarto. Deixei-me ficar quieto, em posição neutra durante alguns minutos, escutando a berraria, até que ouvi, ou senti, Seymour mexer-se na cama perto da minha. Nesses tempos tínhamos sempre uma lanterna na mesinha de cabeceira entre as duas camas, para emergências que, tanto quanto me lembro, nunca houve. Seymour acendeu-a e saiu da cama. 
— A mãe disse que o biberão está em cima do fogão — disse-lhe. 
— Dei-lho há pouco. Não é fome — replicou Seymour. 
Moveu-se às escuras até chegar à estante e passou a luz da lanterna lentamente, para trás e para frente, pelas prateleiras. Sentei-me na cama. 
— O que é que vais fazer?
— Pensei que talvez lhe pudesse ler qualquer coisa... — respondeu Seymour e pegou num livro. 
— Por amor de Deus, ela só tem dez meses! disse eu. 
— Eu sei — retorquiu ele —, mas as crianças têm ouvidos. São capazes de ouvir. 
A história que Seymour leu a Franny, nessa noite, à luz da lanterna, era uma das preferidas dele, um conto taoista. Franny ainda hoje jura que se lembra de Seymour lha ter lido.

«O duque Mu da China disse a Po Lo: 
— Já estás velho. Há algum membro da tua família a quem possa encarregar de me procurar cavalos? 
Po Lo respondeu: 
— Um bom cavalo é escolhido pela estrutura geral e pela aparência. Mas o melhor cavalo, aquele que não levanta pó nem deixa rasto, é uma coisa evanescente e fugaz, esquivo como o ar ténue. O talento dos meus filhos é de nível inferior; quando veem cavalos são capazes de escolher os bons mas incapazes de reconhecer os excecionais. Todavia, tenho um amigo, um tal Chiu-fang Kao, vendedor ambulante de combustível e verduras, que, no que concerne a cavalos, não me é em nada inferior. Rogo-lhe que fale com ele. 
O duque Mu assim fez e depois mandou-o procurar-lhe um garanhão. Três meses volvidos, regressou com a notícia de que tinha encontrado um. 
— Está agora em Shach'iu — acrescentou. 
— Que espécie de cavalo é? — perguntou o duque. 
— Oh, é uma égua baia — foi a sua resposta. 
Mas quando alguém foi buscar o animal, verificou-se que era um garanhão negro como carvão! Muito aborrecido, o duque mandou chamar Po Lo.

Quetzal, 2015
(Serpente Emplumada)
trd. Salvato Telles Menezes


CARPINTEIROS, 
LEVANTEM ALTO O PAU DE FILEIRA /
/ SEYMOUR (UMA INTRODUÇÃO)
(trd. Bertha Mendes)
(lido em 2020)