Equívocos e Fatalidades: A Identidade

A IDENTIDADE
MILAN KUNDERA
(1997)
Um hotel numa cidadezinha à beira-mar na Normandia, que haviam encontrado por acaso num guia turístico. Chantal chegou na sexta-feira à tarde para passar uma noite sozinha, sem Jean-Marc, que havia de se lhe juntar no dia seguinte por volta do meio-dia. Deixou uma mala pequena no quarto e saiu; depois de um pequeno passeio por ruas desconhecidas, regressou ao restaurante do hotel. Às sete e meia a sala ainda estava vazia. Sentou-se a uma mesa à espera de que alguém desse por ela. Do outro lado, perto da porta da cozinha, duas criadas estavam em plena conversa. Detestando elevar a voz, Chantal levantou-se, atravessou a sala e parou ao pé delas; mas elas estavam totalmente apaixonadas pelo seu tema: «Digo-te eu, já vai fazer dez anos. Eu conheço-os. É terrível. Não há qualquer vestígio. Ne-nhum. Falaram do caso na televisão.» E a outra: «Que lhe terá acontecido?» «Nem sequer dá para imaginar. E é isso que é horrível.» «Um assassínio?» «Fizeram buscas por todos os arredores.» «Um rapto?» «Mas quem? E porquê? Não era ninguém rico nem importante. Mostraram-nos na televisão. Os filhos, a mulher. Que desespero. Estás a ver?»
Depois reparou em Chantal: — Conhece o programa da TV sobre as pessoas desaparecidas? Perdido de Vista, é como se chama.
— Conheço — disse Chantal.
— Talvez tenha visto o que aconteceu à família Bourdieu. São
daqui.
— Pois é, é horrível — disse Chantal, sem saber como havia de desviar uma conversa sobre uma tragédia para uma vulgar questão de refeição.
— A senhora quer jantar — disse por fim a outra criada.
— Pois é.
— Vou chamar o chefe, pode ir sentar-se.
A colega acrescentou ainda: — Está a ver, desaparece uma pessoa de quem se gosta e nunca mais se sabe o que lhe aconteceu! É de endoidecer!
Chantal voltou para a sua mesa; o chefe chegou passados cinco minutos; ela encomendou uma refeição fria, muito simples; não gosta de comer sozinha; ah, como detesta comer sozinha!
Ia cortando o presunto no prato e não podia interromper os seus pensamentos desencadeados pelas criadas: neste mundo em que cada um dos nossos passos é fiscalizado e registado, onde em todos os grandes armazéns há câmaras de filmar que nos vigiam, onde as pessoas roçam constantemente umas nas outras, onde uma pessoa nem sequer pode fazer amor sem ser interrogada no dia seguinte por investigadores e agentes de sondagens («onde é que faz amor?», «quantas vezes por semana?», «com ou sem preservativo?»), como pode acontecer alguém escapar à vigilância e desaparecer sem deixar rasto? Sim, ela conhece bem o tal programa com aquele título que a horroriza, Perdido de Vista, o único programa que a desarma pela sua sinceridade, pela sua tristeza, como se uma intervenção vinda de algures tivesse obrigado a televisão a renunciar a toda a frivolidade; num tom grave, um apresentador convida os espectadores a contribuir com um depoimento que possa ajudar a descobrir o desaparecido. No fim da emissão, mostram-se uma após outra as fotografias de todos os «perdidos de vista» de quem se falou nas emissões anteriores; alguns estão por encontrar já há onze anos.
Ocorre-lhe a ideia de um dia perder assim Jean-Marc. Ficar sem saber nada, reduzida a imaginar tudo. Nem sequer poderia suicidar-se, porque o suicídio seria uma traição, a recusa de esperar, a perda da paciência. Seria condenada a viver até ao fim dos seus dias num horror ininterrupto.
Leya (Dom Quixote), 2020
trd. Pedro Tamen
(lido em 2025)

A IDENTIDADE
(l. 1999)