Equívocos e Fatalidades: A Brincadeira


A BRINCADEIRA
MILAN KUNDERA
(1967)

Assim, depois de tantos anos, voltava de novo a casa. De pé, na praça principal (que, criança, depois rapaz, depois jovem, atravessara mil vezes), não sentia qualquer emoção; pelo contrário, pensava que aquele espaço onde a torre do sino (parecida com um antigo cavaleiro sob o seu elmo) se vê acima dos telhados, lembrava a vasta parada de um quartel, e que o passado militar daquela cidade da Morávia, outrora muralha contra as incursões dos Magiares e dos Turcos, imprimira nela a marca de uma irrevogável fealdade. 
Durante anos, nada me atraíra à minha cidade natal. Dizia-me que ela se me tinha tornado indiferente, e isso parecia-me natural: ao fim de quinze anos vividos fora, só me restam alguns conhecidos, ou mesmo os amigos (que prefiro, de resto, evitar); a minha mãe está enterrada num túmulo estrangeiro, que não visito. No entanto iludia-me: aquilo que eu chamava indiferença era na realidade rancor; escapavam-me as razões, pois tinham-me acontecido coisas boas ou coisas más nesta cidade como em todas as outras, em todo o caso esse rancor existia; percebera-o durante a minha viagem: a missão que aqui me trazia poderia, bem vistas as coisas, cumpri-la igualmente bem em Praga, mas tinha sido, num repente, irresistivelmente atraído pela ocasião oferecida de executá-la na minha cidade natal, precisamente por se tratar de uma missão cínica e terra-a-terra que, por ironia, me absolvia da suspeita de aqui voltar sob o efeito de um enternecimento piegas pelo tempo perdido. 
Uma vez mais, percorri cinicamente com os olhos a praça desengraçada antes de lhe voltar costas e tomar a rua do hotel onde tinha um quarto alugado para essa noite...

Dom Quixote, 1987
(Ficção Universal)
trd. Helena Vaz da Silva
(lido em 1998: 2017; 2022)