Equívocos e Fatalidades: A Festa da Insignificância

A FESTA DA INSIGNIFICÂNCIA
MILAN KUNDERA
(2013)
Os Heróis Apresentam-se
Alain medita sobre o umbigo
Era o mês de junho, o sol da manhã saía das nuvens e Alain passava lentamente por uma rua parisiense. Observava as jovens que, todas elas, mostravam o umbigo desnudado entre as calças de cintura descaída e a T-shirt muito curta. Estava cativado; cativado e mesmo perturbado: como se o poder de sedução delas já não se concentrasse nas coxas, nem nas nádegas, nem nos seios, mas nesse pequeno buraco redondo situado no meio do corpo.
Isso incitou-o a refletir: se um homem (ou uma época) vê o centro da sedução feminina nas coxas, como descrever e definir a particularidade desta orientação erótica? Improvisou uma resposta: o comprimento das coxas é a imagem metafórica do caminho, longo e fascinante (é por isso que é necessário que as coxas sejam longas), que conduz até à realização erótica; com efeito, pensou Alain, mesmo em pleno coito, o comprimento das coxas confere à mulher a magia romântica do inacessível.
Se um homem (ou uma época) vê o centro da sedução feminina nas nádegas, como descrever e definir a particularidade dessa orientação erótica? Improvisou uma resposta: brutalidade; contentamento; o caminho mais curto até ao objetivo; objetivo tanto mais excitante quanto duplo.
Se um homem (ou uma época) vê o centro da sedução feminina nos seios, como descrever e definir a particularidade dessa orientação erótica? Improvisou uma resposta: santificação da mulher; a Virgem Maria amamentando Jesus; o sexo masculino ajoelhado diante da nobre missão do sexo feminino.
Mas como definir o erotismo de um homem (ou de uma época) que vê a sedução feminina concentrada no meio do corpo, no umbigo?
Ramon passeia-se no Jardim do Luxemburgo
Mais ou menos ao mesmo tempo que Alain refletia sobre as diferentes fontes da sedução feminina, Ramon encontrava-se diante do museu situado junto ao Jardim do Luxemburgo, onde se expunham, desde há um mês, quadros de Chagall. Queria vê-los, mas sabia antecipadamente que não teria a força suficiente para se deixar transformar benevolentemente numa parte daquela interminável fila que se arrastava lentamente até à caixa; observou as pessoas, os rostos paralisados pelo tédio, imaginou as salas onde os corpos e as tagarelices cobririam os quadros, de tal modo que, ao fim de um minuto, virou-se e seguiu por uma alameda do parque.
Ali, a atmosfera era mais agradável; o género humano parecia menos numeroso e mais livre: havia os que corriam, não porque estivessem apressados
mas porque gostavam de correr; havia os que passeavam e comiam gelados, havia, sobre o relvado, discípulos de uma escola asiática que faziam movimentos bizarros e lentos; mais longe, num imenso círculo, havia as grandes estátuas brancas de rainhas e de outras nobres damas de França e, ainda mais longe, sobre a relva entre as árvores, em todas as direções do parque, esculturas de poetas, de pintores, de sábios; parou diante de um adolescente bronzeado que, sedutor, nu sob os calções curtos, lhe ofereceu máscaras representando os rostos de Balzac, de Berlioz, de Hugo, de Dumas. Ramon não conseguiu evitar um sorriso e continuou a sua deambulação através daquele jardim dos génios que, modestos, rodeados pela gentil indiferença dos passeantes, deviam sentir-se agradavelmente livres; ninguém parava para lhes observar os rostos ou ler as inscrições sobre os pedestais. Esta indiferença, Ramon respirava-a como uma calma que consola. Pouco a pouco, um longo sorriso quase feliz surgiu-lhe no rosto.
Dom Quixote, 2017
trd. Inês Pedrosa
(lido em 2014)