Equívocos e Fatalidades: A Imortalidade


A IMORTALIDADE
MILAN KUNDERA
(1990)

A senhora teria talvez sessenta, sessenta e cinco anos. Via-a da minha cadeira de repouso, reclinado diante da piscina de um clube de ginástica no último andar de um prédio moderno, de onde, através das grandes janelas envidraçadas, se vê Paris inteiro. Estava à espera do professor Avenarius, com quem de vez em quando me encontro aqui para discutirmos diversos assuntos. Mas o professor Avenarius não havia maneira de chegar e eu ia olhando para a senhora; sozinha na piscina, mergulhada até à cintura, ela fitava o jovem professor de natação que, em fato de treino, de pé acima dela, lhe dava a sua aula. Enquanto ouvia as instruções dele, a senhora apoiou-se ao bordo da piscina para inspirar e expirar fundo. Fê-lo com seriedade, com zelo, e era como se da profundidade das águas subisse a voz de uma velha locomotiva a vapor (essa voz idílica hoje esquecida, da qual não poderei dar uma ideia aos que não a conheceram a não ser comparando-a com a respiração de uma senhora idosa que inspira e expira apoiada ao bordo de uma piscina). Olhava-a, fascinado. A pungente comicidade dela cativava-me (e essa comicidade era notada também pelo professor de natação, uma vez que as comissuras dos seus lábios me pareciam estremecer a todo o instante), mas houve alguém que me dirigiu a palavra, desviando a minha atenção. Pouco depois, quando quis voltar a observá-la, a aula terminara. A senhora afastava-se em fato de banho ao longo da piscina e quando se encontrava a quatro ou cinco metros do professor de natação, virou a cabeça na direcção dele, sorriu-lhe, e fez-lhe um sinal com a mão. Fiquei com o coração apertado. Aquele sorriso, aquele gesto, eram de uma mulher de vinte anos! A mão como que voara com uma ligeireza encantadora. Como se, por brincadeira, ela atirasse ao amante um balão de muitas cores. O sorriso e o gesto eram cheios de sedução, ao passo que o rosto e o corpo já nada de sedutor tinham. Era a sedução de um gesto afogado na não-sedução do corpo. Mas a mulher, embora devesse saber que deixara de ser bela, esquecera-o nesse instante. Numa certa parte de nós mesmos, todos vivemos para além do tempo. Talvez só tomemos consciência da nossa idade em certos momentos excepcionais, permanecendo sem-idade a maior parte do tempo. Em todo o caso, no momento em que se virou, sorriu e fez um sinal com a mão ao professor de natação (que, incapaz de se conter por mais tempo, rebentou a rir), a senhora nada sabia da sua idade. Graças a esse gesto, pelo espaço de um segundo, uma essência da sedução dela, não dependente do tempo, revelou-se e deslumbrou-me. Sentia-me estranhamente emocionado. E a palavra Agnès surgiu no meu espírito. Nunca conheci qualquer mulher com esse nome.

Círculo de Leitores, 1990
trd. Miguel Serras Pereira


A IMORTALIDADE
(lido em 1996; 2001; 2015)