Equívocos e Fatalidades: O Livro do Riso e do Esquecimento

O LIVRO DO RISO E DO ESQUECIMENTO
MILAN KUNDERA
(1978)
Em Fevereiro, 1948, o dirigente comunista Klement Gottwald subiu à varanda de um palácio barroco de Praga para falar às centenas de milhares de cidadãos aglomerados na praça da velha cidade. Foi uma grande viragem na história da Boémia. Um momento fatídico, como acontece uma ou duas vezes por milénio.
Gottwald fazia-se acompanhar pelos camaradas, e ao lado, muito perto, estava Clementis. Nevava, fazia muito frio, e Gottwald vinha de cabeça descoberta. Clementis, muito solícito, tirou o gorro em pele que trazia e colocou-o na cabeça de Gottwald.
A secção de propaganda fez centenas de milhares de exemplares da fotografia da varanda de onde Gottwald, de gorro em pele e rodeado pelos camaradas, fala ao povo. Nesta varanda começou a História da Boémia comunista. Todas as crianças conheciam a fotografia, porque a tinham visto nos cartazes, nos manuais ou nos museus.
Quatro anos mais tarde, Clementis foi acusado de traição e enforcado. A secção de propaganda fez com que ele desaparecesse imediatamente da História e, como é evidente, de todas as fotografias. A partir daí, Gottwald está sozinho na varanda. Onde ficava Clementis já só fica a parede vazia do palácio. De Clementis resta o gorro em pele na cabeça de Gottwald.
Estamos em 1971, e Mirek diz: a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento.
Quer justificar assim aquilo a que os seus amigos chamam imprudência: escreve cuidadosamente o diário, conserva a correspondência, redige minutas de todas as reuniões em que eles discutem a situação e se perguntam como continuar. Explica-lhes: eles não fazem nada que seja contrário à constituição. Esconder-se e sentir-se culpado seria o princípio da derrota.
Há uma semana, enquanto trabalhava com a sua equipa de operários de construção no telhado de um edifício em obras, olhou para baixo e sentiu uma vertigem. Perdeu o equilíbrio, agarrou-se a uma trave mal consolidada que se desprendeu; foi preciso retirá-lo debaixo dela. À primeira vista, o ferimento parecia grave, mas um pouco mais tarde, quando verificou que se tratava apenas de uma fractura do antebraço, disse para si próprio, com satisfação, que ia ter algumas semanas de licença e que ia finalmente conseguir resolver assuntos de que não se ocupara até ali por falta de tempo.
Em todo o caso, acabou por se conformar com a opinião dos amigos mais prudentes. A constituição, é verdade, garante a liberdade de expressão, as leis punem tudo o que pode ser qualificado como atentado à segurança do Estado. Nunca se sabe quando o Estado vai começar a gritar que esta ou aquela palavra é um atentado à sua segurança. Decidiu, por isso, levar os escritos comprometedores para lugar seguro.
Mas primeiro quer resolver aquele assunto com Zdena. Telefonou-lhe para a cidade em que ela vive, mas não a encontrou. Foi assim que perdeu quatro dias. Só ontem é que acabou por conseguir falar com ela. Ela prometeu esperar por ele esta tarde.
O filho de Mirek, que tem dezassete anos, protestou: Mirek não podia conduzir com o braço engessado. E era verdade que tinha dificuldade em conduzir. O braço ferido balouçava no lenço diante do seu peito, impotente e inútil. Para meter as mudanças, Mirek tinha que largar o volante.
Círculo de Leitores, 1988
trd. Tereza Coelho
(lido em 1998; 2002)