Equívocos e Fatalidades: O Livro dos Amores Risíveis


O LIVRO DOS AMORES RISÍVEIS
MILAN KUNDERA
(1969)

Ninguém se vai rir
— Dá-me mais um copo de slivovice —, disse-me Klara e eu assim fiz. Encontráramos, para abrir a garrafa, um pretexto que nada tinha de extraordinário mas que servia: recebera nesse dia uma bela maquia por um longo ensaio publicado numa revista de história de arte. 
Mas se o meu ensaio acabara por ser publicado, tal não acontecera sem problemas. O que eu tinha escrito estava cheio de alfinetadas e de ideias polémicas. Fora por isso que a revista O Pensamento Plástico, com a sua vetusta e circunspecta redacção, recusara o texto que, finalmente, eu acabara por entregar a uma revista concorrente, menos importante é certo, mas cujos redactores são mais jovens e mais ousados. 
O carteiro trouxera-me o vale à faculdade, assim como uma carta. Carta sem importância, que li vagamente nessa manhã, todo inchado com a minha glória novinha em folha. Mas já em casa, à medida que se aproximava a meia-noite e que o nível ia baixando na garrafa, por brincadeira, peguei nessa carta que estava em cima da minha secretária e lia-a a Klara. 
«Caro Camarada — e, se me é permitido usar este termo — Caro Colega — perdoe a um homem com quem nunca na vida falou, ter tomado a liberdade de lhe escrever. Dirijo-me a si para lhe pedir o favor de ler este artigo. Não o conheço pessoalmente mas estimo-o pois considero-o um homem cujas opiniões, raciocínio e conclusões sempre me pareceram corroborar de modo surpreendente o resultado das minhas próprias ivestigaçõe...» Seguiam-se grandes loas aos meus méritos e um pedido: solicitava-me o obséquio de redigir uma nota de leitura para a revista O Pensamento Plástico que, desde há seis meses recusava e denegria o seu artigo. Haviam-lhe dito que a minha opinião seria decisiva e eu era agora a sua única esperança, a única luz das suas obstinadas trevas.

Dom Quixote, 1991
(Ficção Universal)
trd. Luísa Feijó e Maria João Delgado
(lido em 1999; 2024)