Equívocos e Fatalidades: A Vida não é Aqui

A VIDA NÃO É AQUI
MILAN KUNDERA
(1969)
Quando a mãe do poeta perguntava a si própria onde teria sido concebido o poeta, apenas três possibilidades entravam em linha de conta: uma noite no banco de uma praça ajardinada, uma tarde no apartamento de um amigo do pai do poeta, ou uma manhã num recanto romântico dos arredores de Praga.
Quando o pai do poeta colocava o mesmo problema, chegava à conclusão de que o poeta fora concebido no apartamento do amigo, porque nesse dia tudo correra mal. A mãe do poeta recusava-se a ir a casa do amigo do pai, discutiram os dois por duas vezes e por duas vezes se reconciliaram, enquanto estavam a fazer amor a fechadura do apartamento rangeu, a mãe do poeta assustou-se, interromperam o acto, e depois recomeçaram a amar-se, chegando ao fim no meio de um nervosismo recíproco, ao qual o pai atribuía a concepção do poeta.
A mãe do poeta, em contrapartida, nem por um segundo admitia que o poeta tivesse sido concebido num apartamento emprestado (reinava lá dentro uma desordem de celibatário, e a mãe considerava com repugnância os lençóis da cama desfeita onde se via o pijama amarrotado do desconhecido) e rejeitava igualmente a possibilidade de o poeta ter sido concebido no banco de uma praça ajardinada onde só se deixara convencer a fazer amor contra vontade e sem prazer, pensando com repulsa que eram as prostitutas quem fazia assim amor nos bancos das praças ajardinadas. Por conseguinte, convencera-se em absoluto de que o poeta só podia ter sido concebido durante uma manhã de Verão soalheira ao abrigo de um grande rochedo que se erguia pateticamente entre outros rochedos num valezinho onde os habitantes de Praga costumam passear aos domingos. Este cenário convém, por várias razões, como lugar da concepção do poeta: iluminado pelo sol do meio-dia, é um cenário, não de obscuridade mas de luz, de dia, não de noite; é um lugar situado no centro de um espaço natural aberto, e por isso um lugar feito para o voo e para as asas...
Dom Quixote, 1990
(Ficção Universal)
trd. Miguel Serras Pereira
(lido em 1999; 2016)